“O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem.” (Guy Debord)
Domingo de manhã. Na Marginal do Tietê, o táxi avança rumo ao aeroporto de Cumbica. O trânsito flui bem, como gostam de dizer os repórteres de rádio. O motorista (do táxi, bem entendido) não encontra dificuldades. Nos dias inúteis os automóveis andam mais soltos. Liberada pela inexistência de engarrafamentos, a mente se aquieta e se ocupa de assuntos amenos: o cachorro da infância, a filha que mora em Berlim, os vinhos Tanat, o filho de riso tão bonito, o laço do sapato que se desfez e assim ficará, desfeito, até o aeroporto.
Então, o celular toca. Um susto. A essa hora? É Adauto Novaes, chamando do Rio de Janeiro. Está bravo. “Amigo, você viu o desrespeito que foi aquele minuto de silêncio da Fifa para homenagear o Mandela? Não durou nem 15 segundos! Que vexame, amigo! Essa gente não suporta o silêncio. Por que eles não suportam o silêncio? É preciso explicar isso.” Adauto Novaes é filósofo por natureza, por formação e pelo apego que tem ao silêncio (embora, nesse domingo inútil, estivesse atipicamente falante). Adauto sabe muito. Às vezes, porém, por distração ou otimismo, parece não saber que nem todos os brasileiros gostam de futebol, de estádios e de sorteios. É como se ele se esquecesse de que alguns brasileiros, a despeito da nacionalidade que os define, prefeririam fugir do Brasil durante a Copa. Um exílio, pelo amor de Deus.
Em junho do ano que vem o Brasil inteiro vai virar um estádio continental, uma barulheira doida. Socorro! Adauto está furioso com os cartolas da Fifa – ele e a torcida brasileira. Querem uma Copa decente, digna, que respeite Nelson Mandela, que tenha a compostura de fazer valer um minuto de silêncio honesto. Alguns poucos, porém, a exemplo deste lacônico passageiro de táxi, não querem Copa nenhuma. Querem distância das arquibancadas. Preferem o silêncio ao grito de gol. Coisa mais deprimente um grito de gol. Para essa minoria incompreendida, o minuto de silêncio da Fifa não deveria durar 60 segundos, mas dois anos inteiros (a Copa do ano que vem aí incluída). Tudo, tudo em silêncio. Tudo calmo. Toda a Marginal vazia, o pensamento leve e, de resto, só esse movimento de partir, sem aflição, sem dor, sem gritaria.
Ojeriza ao silêncio
Não obstante, a pergunta de Adauto Novaes é muito boa. Por que essa gente da Fifa não se concilia com o silêncio? Por que, para eles, a ausência de palavras parece ser um veneno mortal? Por que, na alegria artificial da televisão, não cabem o recolhimento, a pausa, o escuro? Por que a ausência de alarido desconstrói a lógica da TV?
Uns poderiam responder com a velha máxima: tempo é dinheiro. Seria um bom palpite, embora insuficiente (e já veremos por quê). De fato, na televisão e na Copa, tempo é dinheiro. Cada minuto vale uma fortuna. É o preço do olhar mundial que está em jogo. Quanto custa um minuto das atenções de todas as torcidas do planeta? Custa um bocado, o suficiente para que os cartolas não queiram desperdiçá-lo com um sujeito morto. Sim, tempo é dinheiro. O seu tempo também, estimado leitor. Portanto, vamos logo com isso.
Dizer que tempo é dinheiro não basta. Há algo mais, aqui, e esse algo mais é uma potência matemática: a imagem. Sem imagem – isto é, sem pirotecnias, sem coreografias mirabolantes, sem moças bonitas, sem fanfarronices presidenciais, sem efeitos especiais – o capital contemporâneo se encolheria até quase desaparecer. É assim que a equação E= ki (inventada por este articulista a partir de uma ou outra ideia de Guy Debord) nos ajuda a entender melhor a ojeriza da indústria do entretenimento – da qual faz parte o futebol – ao silêncio.
No apito final
Adestradas pelo espetáculo, as multidões aprenderam a repelir o silêncio, pois funcionam como coadjuvantes solícitas e saltitantes da indústria do entretenimento. As torcidas dentro dos estádios são o equivalente universal daquelas a quem Silvio Santos chamava de “colegas de trabalho” nos seus programas de auditório. Como as “colegas de trabalho” do animador, as torcidas deveriam ganhar um sanduíche de mortadela da Fifa no intervalo das partidas. Uma torcida emudecida e imóvel acabaria com a graça de um jogo de futebol. Torcedores briguentos estragam a festa, é verdade. Mas torcedores imóveis e calados produziriam danos maiores.
Sendo uma empresa (privada) que remunera os seus investidores a partir da extração de olhar, a Fifa gera valor na medida em que consiga capturar olhos acesos. Ora, o silêncio não gera olhos acesos. Ao contrário, convida as pálpebras a baixarem. Envolvida pela calmaria, a consciência tende a ordenar que os olhos se fechem, o que significa baixar as cortinas do olhar. Faz cessar momentaneamente o espetáculo. Nesse instante – perigosíssimo –, a imagem artificial sai de cena e dá lugar ao fluxo do pensamento – ou à mera meditação. As engrenagens da indústria do entretenimento engasgam, reduzem a marcha. Um risco danado. Se os atores do espetáculo se permitem ficar assim em silêncio por 60 longuíssimos segundos, o público pode sentir um impulso de fechar os olhos – e público de olhos fechados é menos cativo do que público aprisionado pelo olhar.
Eis por que o burocrata da Fifa encurtou o minuto de silêncio. A exemplo dos donos das fábricas no início da Revolução Industrial, ele roubou no tempo. Os capitalistas de antigamente faziam isso para aumentar a jornada de trabalho. A Fifa faz isso para aumentar a jornada do olhar. O que dá no mesmo: assistir a um jogo da Copa é trabalhar para a Fifa. E, no apito final, a torcida ainda agradece, olhos esbugalhados, cheios de cerveja. Urros no ar. Foguetório. Passeatas a favor. Bandeiras nacionais. Cruzes.
Adauto despede-se. O táxi acelera. Sinais do aeroporto surgem no horizonte. É uma esperança.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM