Durante cerca de 40 horas, o presidente dos EUA, Barack Obama, e seu antecessor e antagonista político, George W. Bush, acompanhados de suas mulheres, dividiram a cabine principal do Air Force One. Na viagem de ida e volta à África do Sul, para o tributo ao líder Nelson Mandela, jantaram e discutiram a agenda doméstica e a dedicação de Bush à pintura. Mas profissionais de imagem dos principais veículos de comunicação americanos não puderam registrar o momento. Só o fotógrafo oficial da Casa Branca, Pete Souza, teve acesso à área restrita. O episódio reanimou a batalha da imprensa contra o que considera violação sistemática da liberdade de informação e falta de transparência patrocinadas pelo governo Obama – que prometeu a administração mais aberta da História.
Sem o clique da viagem, na última quinta-feira os correspondentes da Casa Branca utilizaram boa parte da entrevista diária do secretário de Imprensa de Obama, Jay Carney, transmitida ao vivo, para questionar a restrição de acesso de fotógrafos e cinegrafistas ao dia a dia do presidente. Num pinga-fogo que deixou Carney encurralado, cobraram ações concretas que mudem a rotina na qual a Presidência está construindo sozinha a imagem de Obama e seu governo, sem direito ao contraditório e às imperfeições que olhares diferentes permitem e captam, diferenciando jornalismo de propaganda. A insatisfação foi resumida pela repórter Brianna Keilar, da CNN:
– Foi Obama que disse que transparência é a marca de sua administração. Não é um problema que ele não cumpra o padrão que estabeleceu?
Na segunda-feira [9/12], a revista “Time” publicara artigo do editor de Fotografias de Bush, Mike Davis, hoje professor da Syracuse University, no qual profissionais alertam que o governo Obama está impedindo o bom exercício do jornalismo de imagens. Dois dias depois, o diretor de Fotografia da agência Associated Press (AP), Santiago Lyon, acusou o governo, no “New York Times”, de querer criar a realidade.
Sem o mesmo alarde, 38 veículos e associações de imprensa – incluindo os pesos-pesados da mídia nacional – já haviam enviado a Jay Carney, em 21 de novembro, uma carta com reclamações sobre a cobertura do presidente. Entre as principais queixas estão os eventos fechados, sob argumentação de serem privados, mas cujo registro fotográfico oficial é divulgado posteriormente pela Presidência nas mídias sociais. Sete eventos específicos entre julho e outubro são citados – incluindo encontros com a ex-secretária de Estado Hillary Clinton e com a ativista paquistanesa Malala Yousafzai.
“Tão certo como se pusessem a mão nas lentes das câmeras dos jornalistas (…), as restrições impostas pela Casa Branca aos fotógrafos, seguidas pela divulgação rotineira de fotos feitas por funcionários do governo nos mesmos eventos, são arbitrárias e uma interferência injustificada na legítima atividade de apuração jornalística. Vocês estão, de fato, substituindo o fotojornalismo independente por comunicados de imprensa visuais”, diz a carta.
Cinco mil fotos oficiais no Flickr
Os problemas de Obama com a imprensa começaram no seu primeiro dia no Salão Oval, fotografado apenas por Pete Souza. Desde então, se acumulam e, de tempos em tempos, vêm a público. Cientista política da Towson University, em Maryland, Martha Joynt Kumar, que estuda a Presidência e sua relação com a mídia, afirma que a Casa Branca historicamente tenta reter o máximo de controle sobre a imagem presidencial, uma vez que fotos e vídeos têm mais impacto do que a palavra. Porém, diz, há peculiaridades no modus operandi e no ambiente do governo Obama que estimulam as reclamações.
Por ser um presidente da era da internet, Obama tem uma quantidade maior de ferramentas de comunicação direta, com sites, blogs e as mídias sociais, sendo menos sensível à demanda e ao papel da imprensa. Só no Flickr há cerca de 5 mil fotos oficiais da Presidência, cada uma vista até 200 mil vezes.
Segundo, a mídia não vive um momento de exuberância financeira e cortou profissionais, tendo que priorizar coberturas. Isso retroalimenta a restrição de acesso e cria obstáculos ao negócio: como as fotos oficiais são distribuídas gratuitamente, as empresas têm pouco material de imagem para vender e menos chamarizes para os leitores comprarem seus produtos. Os 38 signatários da reclamação a Carney enviaram separadamente aos membros das associações de editores de notícias cartas os encorajando a não mais publicar fotos oficiais.
A terceira particularidade é talvez a mais relevante: Obama se diz o presidente da transparência, mas não age como tal. Isso está evidente em assuntos como vigilância em massa da Agência de Segurança Nacional (NSA), operações com drones e investigações de jornalistas. A devassa secreta feita em escritórios da AP e do apresentador James Rosen, da Fox News, atrás das fontes de vazamentos de informações, são dois exemplos de 2013 que ajudam a explicar o azedume renovado.
– Flickr e Facebook não são realmente substitutos para fotógrafos. A mídia sempre terá interesses e ângulos diferentes. Uma parte da liberdade de imprensa inclui fotógrafos e cinegrafistas, que tomam decisões de registro e edição, e fornecem um olhar independente. Obama terá que negociar ampliação de acesso se quiser provar que sua intenção de transparência é para valer – afirma a cientista política.
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Flávia Barbosa é correspondente do Globo em Washington