Qual foi o papel da mídia? Pergunta recorrente em se tratando de qualquer acontecimento de grande repercussão. Quando chamado a opinar, é inevitável: você acha que a imprensa influenciou no julgamento do mensalão? Fim de ano, retrospectivas: que balanço pode ser feito das manifestações de 2013?
Como participei, por meio deste Observatório, das tentativas de compreender aquela espécie de Primavera Brasileira, tenho ganas de voltar ao assunto para fechá-lo, agora, ancorado no distanciamento que nenhum calor da hora possibilita. Mas, já àquela ocasião, fui voz solitária, e esquecida nos trechos editados, a lembrar que existe muita diferença entre manifestação e mobilização, embora, por vezes, sinônimas.
Manifestação tem a ver com multidão na rua. Mobilização tem a ver com agenda permanente, enfrentamento de longo prazo, especialmente quando mobilização vem acompanhada de um qualificador: social. Há mobilizações que duram para sempre. Contra o alcoolismo, por exemplo. Enquanto houver bebidas de teor e efeitos etílicos, sempre haverá algum sem noção em matéria de quantidade, frequência e responsabilidade.
No Brasil, o alcoolismo é problema de saúde pública. E os Alcoólicos Anônimos servem de exemplo de mobilização social, raramente com “venda de espaço” midiático, somente aqui e acolá o desprendimento de uma mídia gratuita, um merchandising social em telenovela, um banner que seja. Mas eles são duradouros e universais. Sou capaz de apostar que estão presentes em todos os quase 6 mil municípios brasileiros e em numerosos países.
Pressão das ruas
Pode-se dizer que as manifestações representam os momentos dramáticos e agônicos das mobilizações. Em geral, quando o povo toma as ruas é porque se cansou de bater em alguma porta e não ser ouvido, mesmo quando o faz com a dramaticidade da mídia. Há mobilizações que têm fim, depois de muitas manifestações. A duplicação de um trecho de rodovia, por exemplo, mesmo que ao custo de muitas vidas e até de funesta perífrase: “Estrada da Morte”. Manifestações derrubam tiranos, mas somente a mobilização silente e eterna qualifica uma democracia.
As manifestações servem para acordar a imprensa e, com ela, os espelhos da visibilidade. A imprensa, embora seja entre as instituições a que melhor dramatiza, possivelmente é a que mais sofre de amnésia, sobretudo porque tem um especial desprezo pelo que não é novidade. Mobilizações caem no esquecimento, sem ter desaparecido, razão pela qual os mobilizadores renovam as campanhas e até criam sazonalidades mnemônicas: Outubro Rosa; Novembro Azul; Dia Internacional da Luta contra Aids; Semana Nacional do Trânsito. Vão-se os slogans (posicionamentos), permanece a causa.
Desde que existe casamento, há uma parcela dos parceiros dispostos à violência doméstica. Por vezes, é necessário ir às manifestações, ir a público expor as chagas, mas somente uma permanente e dramática mobilização conduz o assunto a uma mudança de paradigma, por força de lei, como no eloquente exemplo da Lei Maria da Penha. Somente por decorrência de uma mobilização se consegue institucionalizar uma Delegacia da Mulher.
Governos executam políticas sociais e políticas públicas, mas somente ao peso de longos processos de mobilização social é que institucionalizam programas sociais capazes de ultrapassar gestões e placas de inauguração. Governos até criam planos de enfrentamento, mas somente com a resposta da sociedade é possível fazer com que, hoje, em todo o território nacional, qualquer pessoa, anônima e gratuitamente, consiga fazer uma denúncia de violência contra criança, “discando” 100.
Enfrentar a corrupção requer infindáveis gastos de energia e de indignação. Mas nem todas as manifestações do mundo irão varrer a corrupção da vida pública, mesmo que haja uma manchete por dia a denunciá-la. Cartazes e manchetes não vencerão a corrupção se não houver por parte da sociedade a institucionalização de mecanismos de denúncia e de punição. E o efeito “mensalão” cairá no esquecimento e na desmoralização se se deixar contagiar por circunstâncias políticas. Em dados momentos do referido processo, houve ministros a rebater que estivessem agindo sob pressão das ruas, da imprensa ou de quem quer que fosse. Mas, está aí um enigma de difícil resposta: teria o “mensalão” chegado aonde chegou não fosse a pressão social e, com ela, a prontidão da imprensa?
Redes arrefecidas
Sobre as manifestações que marcaram o Brasil em 2013, tanto quanto as passeatas de maio de 1968 na França, todos nós sabemos que não sabíamos o que agora sabemos. Não sabíamos, em seu começo, que tinham, de fato, uma índole cívica. Mas tão logo essa vocação se manifestou, foi rapidamente desvirtuada – a ponto de protagonistas, como foram os jovens em favor do Passe Livre, se retirarem para não se confundir com os “vândalos” que se apoderaram das “mobilizações”.
No início, as ruas foram tomadas por jovens corajosos e sinceros, seguidos depois por uma legião de indignados que incluía pais, idosos e até crianças. Em seguida, prevaleceu uma tal anomia que qualquer manifestação degringolava em depredações, saques e horror, shows de horror. E, claro, com a midiaticidade correspondente.
E o que restou da “voz rouca das ruas”? Restou uma incompletude, marcada pela sensação de que era para se ter ido mais além e por um outro tipo de frustração: é preciso pensar mil vezes antes de sair de casa para realizar alguma manifestação, pois já não se sabe como ela poderá terminar – e sob o domínio de quem. Manifestações são importantes instrumentais cívicos, mas elas estão sob regime de cautela. Começavam nas redes sociais e terminavam nas ruas. Mas até nas redes sociais estão arrefecidas. Perdeu a sociedade e perderam os mobilizadores, esta categoria social de cidadãos sempre disposta a “convocar vontades” e a “coletivizar imaginários”, para usarmos a terminologia de um dos autores que mais se dedicou ao tema da mobilização social, o colombiano José Bernardo Toro.
******
Luiz Martins da Silva é jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da UnB