Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diploma que mantém o AI-5 no jornalismo

O sindicato dos jornalistas do Pará tem aproximadamente 800 jornalistas cadastrados. Só uns 300 estão com suas mensalidades em dia. Há pelo menos cinco anos, 250 jornalistas, com registro competente na delegacia local do Ministério do Trabalho, tentam se sindicalizar. Não conseguem. O sindicato se recusa a admiti-los, embora eles preencham todas as exigências legais para serem aceitos. É que estão fora da estratégia corporativa da Federação Nacional dos Jornalistas.

A Fenaj, no último encontro nacional de jornalistas, deliberou (segundo a versão do sindicato estadual, contra os votos de São Paulo e do Pará) obrigar as entidades filiadas a não recepcionar os jornalistas que obtiveram o registro profissional graças à decisão do Supremo Tribunal, em entendimento jurisprudencial, de que não é constitucional a exigência de diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista.

A federação e os sindicatos pretendem manter sua decisão até que o legislativo federal imponha novamente o diploma como requisito necessário para o ingresso na atividade jornalística. Um projeto de emenda constitucional que prevê essa medida tramita pela Câmara Federal, depois de passar pelo Senado. Quando a emenda for aprovada, as portas (porteiras ou jaulas) sindicais estarão abertas a quem atender a essa formalidade.

Com ela, as entidades representativas, com seu obtuso e estúpido senso corporativo, restituirão o jornalismo brasileiro à era do AI-5. É muito fácil, hoje, sob a proteção das garantias e direitos individuais, atacar esse ato institucional, que completou no dia 13 de dezembro 45 anos de existência. E atacá-lo pelo que ele tem de mais nefando: a instauração de uma ditadura com base num texto que se pretendia legal, ainda que maculando o regime que dá força à letra da lei, a democracia.

Ingresso trancado

O decreto-lei que introduziu a exigência do diploma do curso superior de comunicação social como condição para o exercício da profissão de jornalista é filho natural do AI-5, ao qual se seguiu no espaço de apenas um semestre, no período mais negro da república brasileira. No mundo democrático, o único com imprensa para valer (nos regimes totalitários, de partido único, a imprensa é a voz do ditador), a entrada no jornalismo é livre. Qualquer um pode se apresentar e ser aceito.

Se o candidato tiver uma qualificação superior, em um curso decente, melhor. Afinal, estará mais qualificado do que um pretendente – digamos assim – leigo. A abertura, porém, é indispensável para absorver as vocações naturais ao jornalismo, o fluxo de talentos que nem sempre se adaptam ao mundo acadêmico. Como, para dar um único exemplo, Paulo Francis – e as centenas de bons jornalistas que já trabalhavam na imprensa antes dessa transformação totalitária de 1969 e continuaram na ativa depois. Na média, os melhores jornalistas do país até hoje.

É inconcebível que as entidades sindicais ainda se apeguem a esse formalismo, emerso do buraco negro do AI-5, com seu arcabouço de vilanias, para impor a unilinearidade (ou o trilho condutor) na formação de quadros para o jornalismo. É evidente que os taumaturgos do diploma de abre-te-sésamo (ou, de outra perspectiva, fecha-te-sésamo) queriam cerrar as portas para a brilhante geração de jornalistas (raros dos quais dotados de qualquer diploma universitário, o que era uma deficiência), formada à luz da redemocratização de 1946, a mais brilhante da história do jornalismo nacional, que tanto incomodou os donos do poder entre 1964 e 1968 – com sua inteligência, seu conhecimento, sua argúcia, seu humor, sua coragem e sua audácia.

Queria também colocar os candidatos a jornalistas na lata de sardinha em que se tornou a universidade brasileira depois de 1964, em especial do anódino e metafísico curso de comunicação social daquele tempo, cujo estereótipo (dotado de verossimilhança) era a “comunicóloga da PUC”, personagem criada por Jô Soares para a televisão.

O sindicalismo que barra o ingresso aos seus quadros de profissionais, não só pretendentes a cargos na redação, mas os que já nela militam, é a outra face desse totalitarismo a que tanto, de boca, diz se opor. Aos que sustentam essa posição por desaviso, recomendo a leitura de um livro do grande jornalista K. S. Karol sobre o poder pós-revolucionário, aquele poder alcançado pela esquerda na antiga União Soviética e no leste europeu (na China e em Cuba também). Nessa sociedade não existia ou ainda não existe crítica. A que tenta existir é reprimida. A imprensa é o órgão do partido. A liberdade deixou de existir. E cabe lembrar: Karol era inquestionavelmente de esquerda.

Ao trancar o ingresso, os sindicatos de jornalistas violam a lei em vigor, que todos devem cumprir. Têm todo direito, que o regime democrático lhes confere, de achar a lei injusta e iníqua, e se empenhar por derrubá-la. Mas devem respeitá-la enquanto estiver vigente. Essa tática do fato consumado, recurso dos que não têm argumento, é ilegal. Para os que tomaram essa decisão, a moral está acima da lei. Mas a moral deles, não a moral coletiva. A moral da vanguarda, dos iluminados, dos escolhidos. Sabemos no que dá essa presunção.

País único

Um fato intriga: por que esses tantos candidatos à sindicalização se mantêm imobilizados e calados? Por que não pedem uma fiscalização do Ministério do Trabalho, que lhes fez o registro na carteira profissional, habilitando-os à atividade que escolheram? Por que não recorrem à justiça? Por que, ao menos, não protestam?

É porque muitos deles querem a carteira de identificação fornecida (por alto valor) pela Fenaj. Mesmo que, forçando a barra e o portão, venham a se sindicalizar, terão que enfrentar outra batalha para receber a carteira de identificação civil e profissional, que equivale ao registro geral. A Fenaj só atende espontaneamente aos que têm aquele pedaço de papel que, em boa parte dos péssimos cursos de jornalismo espalhados pelo país, com raras e honrosas exceções, é tido por diploma de habilitação.

Ledo engano, é claro. O engano, contudo, é escondido e no seu lugar se brada como verdade esse absurdo, que torna o Brasil o único país a exigir tal diploma para o exercício da profissão de jornalista. Esse Brasil dos sindicalistas corporativos. O Brasil do AI-5 que remanesce e renasce como erva daninha nesse setor vital da democracia. Não por acaso, aliás.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)