Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Natal violento e o orgulho do carioca

Uma menina de 11 anos tomava café da manhã na sala de sua casa, numa favela do subúrbio do Rio, quando foi atingida por uma bala na cabeça e morreu. Seu irmão, de 7 anos, e um tio, ficaram feridos. Na manhã seguinte, uma menina de 10 anos levou um tiro no peito em frente à casa de parentes, em outra favela carioca. À tarde, um menino de 2 anos teve a cabeça varada por uma bala quando voltava com os pais para casa, num morro no Centro de Niterói, e está hospitalizado em estado grave. Entre a noite e a madrugada, uma mulher foi ferida na perna por um tiro de fuzil na favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio, e um adolescente de 15 anos baleado numa rua da Cidade de Deus, na Zona Oeste. No sábado (28/12), uma menina foi gravemente ferida na cabeça, em Belfort Roxo, na Baixada Fluminense.

O Globo registrou pelo menos oito vítimas de balas perdidas – à falta de melhor denominação para o que, na maioria absoluta das vezes, deveria ser classificado como “fogo cruzado” – na semana do Natal. Fora os dois feridos em tiroteio entre policiais e traficantes, na Rocinha “pacificada”, que não entraram nessa contabilidade. Fora, como sempre, os casos não notificados, ou que não chegam a ser noticiados.

Porém, o que causou revolta mesmo foi a pichação da estátua de Carlos Drummond de Andrade, na praia de Copacabana.

A carne e o bronze

Seria simples dizer que casos de tiroteios, especialmente na periferia, mesmo quando fazem vítimas de carne e osso, se banalizaram a ponto de já não provocarem indignação a não ser dos parentes e amigos próximos. Mas as agressões à estátua do poeta também já se tornaram rotina: o próprio jornal informa que este foi o décimo ataque à escultura, da qual, em geral, eram retirados os óculos de bronze. Entretanto, continuam a merecer destaque. Talvez porque sintetizem a ofensa a um símbolo da nossa cultura, arranhem a imagem de serenidade e cordialidade que pretendemos cultivar e, nunca será demais lembrar, rendam belas imagens à beira-mar.

Desta vez, além do mais, havia o flagrante de uma câmera de vigilância, que capturou o casal responsável pela pichação, no início da madrugada do dia 25/12: a cena foi incorporada no noticiário on line e logo se espalhou pela internet, provocando a previsível enxurrada de manifestações de revolta.

No Globo, ao lado da chamada no alto da capa de 26/12 sobre o “Natal violento”, para o qual o jornal dedicou internamente uma página inteira, o destaque era a foto do rosto em bronze do poeta, pelo qual escorria a tinta branca.

Um antigo morador do bairro, dono de uma loja de materiais de construção, logo providenciou, por conta própria, a limpeza da estátua. Mereceu foto aberta na primeira página do dia seguinte, tirou fotos com clientes e desconhecidos, virou celebridade.

(Na mesma edição, no alto da página, uma sequência de fotos contrariava a imagem do carioca cordial: eram flagrantes da perseguição e prisão de um jovem musculoso que havia roubado pouco antes as mochilas de turistas argentinas, também na praia de Copacabana).

Uma fotografia na parede

O ato de incivilidade contra a estátua – tipificado como crime pelo Código Penal – foi tema da coluna de um articulista do jornal, que relacionava hipóteses para a punição do casal. Reconhecia que, “a olho nu”, comparativamente a tantos episódios que abalaram famílias pobres nessa época do ano, aquele podia ser um crime menor, “mas bateu doído no orgulho carioca”.

O Drummond de bronze está limpo, pronto para ser cercado novamente pelo carinho de moradores e turistas.

Entre os sobreviventes das “balas perdidas” na semana do Natal, duas crianças continuam em estado grave.

E a menina de 11 anos que tomava café da manhã em sua casa na favela tão distante de Copacabana é agora apenas uma fotografia na parede.

******

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)