Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os rebeldes da banda larga

Entre o papa Francisco e Edward Snowden, a revista Time escolheu o primeiro como Personagem do Ano, no que foi seguida por um grupo de 11 jornais conservadores da América Latina. Já o diário britânico The Guardian, a revista eletrônica Salon, a New Yorker e Eugene Robinson, do Washington Post, preferiram Snowden. Para John Cassidy, da New Yorker, pelo critério de escolha adotado pela Time, “a pessoa que mais influiu no noticiário” em 2013 não teria sido o sumo pontífice, mas o ex-analista e défroqué da NSA. Seu argumento é consistente.

Ao vazar catadupas de documentos sigilosos da agência oficial de espionagem eletrônica dos EUA para a imprensa mundial, por intermédio de três jornalistas independentes, Snowden deflagrou, em maio, um processo denunciatório que não influiu apenas no noticiário, mas também – e de forma revolucionária – no esquema tradicional de difusão de notícias. Com novas e mais estarrecedoras revelações sobre a NSA a caminho, sem que se saiba até quando o vazamento vai durar, Snowden pode acabar sendo eleito pela Time o Personagem da Década.

Se não fosse ele e a rede de informações filtradas através de Glenn Greenwald, Laura Poitras e Barton Gellman, as exorbitâncias do programa de vigilância da NSA, executado com a cumplicidade das maiores empresas da internet, jamais teriam chegado ao conhecimento público e muito menos ao gabinete do juiz Richard Leon, que, aliás, considerou-as incompatíveis com a Quarta Emenda da Constituição, que proíbe a xeretagem indiscriminada de telefonemas e e-mails de cidadãos americanos sem prévia autorização judicial.

Combate por fibra óptica

Desmentindo paulatinamente todas as pérfidas conjecturas a seu respeito, Snowden não vendeu seu butim aos russos e chineses, recusou-se a barganhá-lo por um asilo em Pindorama e deu mais visibilidade e musculatura à dissidência pacífica e à luta contra os leviatãs da era tecnológica. Ele não inventou, mas aperfeiçoou a arte de vazar informações sigilosas de quem as obtém e mantém de maneira capciosa, visando unicamente a “informar o público sobre o que é feito em seu nome e contra seus interesses”. Ao aperfeiçoá-la, reinventou a desobediência civil.

O conceito de desobediência civil (a uma situação injusta ou a regras ofensivas aos direitos fundamentais do homem) tornou-se indissociável de seu mais destacado praticante, Henry David Thoreau. Preso por se recusar a pagar impostos que ajudariam a financiar a guerra dos EUA contra o México, Thoreau escreveu um ensaio anarquista e libertário (“Desobediência Civil”, 1849) de enorme influência sobre Gandhi, Tolstoi, Luther King e até sobre o crítico literário Edmund Wilson, que ficou nove anos sem prestar contas ao fisco em protesto contra as despesas do governo com a Guerra Fria. As causas mudaram, a combatividade não.

Ao menos nos centros mais desenvolvidos, os modelos analógicos de desobediência civil – panfletagem impressa, assembleias, passeatas – perderam a força aglutinadora de antigamente. A geração que cresceu com a internet sabe mais que as anteriores que informação é poder e por isso não admite seu controle por quem quer que seja. Seu modus agitandi já não mais se satisfaz com o uso de celulares e da internet para convocação de correligionários a praças e passeatas. O combate agora se dá por fibra óptica, mediante o vazamento de informações de sistemas de segurança que operam ao arrepio da lei e ameaçam a privacidade e a liberdade individual.

Os dissidentes do século 21

Os dissidentes digitais – também conhecidos como cypherpunks (cypher é código em inglês), apud Julian Assange, padroeiro da turma – livraram-se de apanhar da polícia nas ruas, mas em compensação podem ser identificados e neutralizados pelos mesmos meios que facilitaram sua investida contra a corrupção e o abuso de poder endêmico no sistema corporativo global. Além de silenciados, os criptopunks podem ser presos ou confinados em embaixadas, como Assange, e exilados em terras de antigos inimigos, como Snowden, o espião que saiu não do frio, mas para o frio. Compartilhar informações é “um imperativo moral”, defendeu Aaron Swartz num veemente manifesto contra “a privatização do conhecimento”, divulgado em 2008. Ao tornar público o conteúdo de diversas revistas acadêmicas, candidatou-se a 35 anos de prisão e multas que chegariam a US$ 1 milhão. Encurralado, enforcou-se em janeiro.

O soldado Chelsea Elizabeth (ex-Bradley) Manning pode apodrecer na cadeia por haver denunciado crimes de guerra e exposto as engrenagens de vigilância penetrante do governo Obama e várias mutretas do big business. Igual destino espera Jeremy Hammond, que surrupiou dados comprometedores da empresa de inteligência privada Stratfor.

Em junho, Barrett Brown, jornalista freelancer ligado ao hackerativismo do Anonymous, foi indiciado por ter trazido à luz as atividades da indústria de alta tecnologia e inteligência, e corre o risco de passar até 105 anos atrás das grades. Esses – e mais Andrew Auernheimer e Mark Klein, que puseram em maus lençóis a poderosa parceira da NSA no monitoramento de telefonemas, AT&T – são os dissidentes do século 21, os grandes personagens dos últimos anos. Vida longa aos rebeldes da banda larga.

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Sérgio Augusto é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo e autor, entre outros, de E foram todos para Paris (Casa da Palavra)