Sonho de uma noite de inverno: os jornalistas chineses terão que ler 700 páginas de um manual que ensina como devem comportar-se perante o governo e o partido. Ocioso dizer que lá partido e governo são a mesma coisa.
Deverão dedicar-se pelo menos 18 horas ao estudo do calhamaço para poder prestar o seu exame em janeiro e fevereiro. É como o exame da ordem para os advogados brasileiros: não passou, não tem licença para ser jornalista.
A notícia, segundo o enviado especial da Folha de S.Paulo a Shaoshan, Marcelo Ninio, foi publicada pelo jornal estatal “Global Times”(e há algum que não seja estatal lá?), diz que pelo menos 250 mil jornalistas deverão submeter-se ao exame.
As 700 páginas não contém muitas sutilezas confucianas e vão direto ao assunto: ‘É absolutamente proibido publicar reportagens ou comentários que vão contra a linha do partido”. Ou ainda: “A relação entre o partido e a mídia é a de líder e liderado”.
Bem como ensinava Deng Xiaoping: pouco importa a cor do gato desde que ele cace ratos.
Segundo o jornalista, o manual ainda inclui temas como “socialismo com características chinesas” e “perspectiva marxista do jornalismo”.
Modelo ideal
Os potenciais controladores da imprensa aqui no Brasil, aqueles que não se cansam de sugerir, propor e defender formas de estabelecer diretrizes para impor suas formas de ver o mundo e de como as notícias devem ser publicadas, esfregaram as mãos de alegria. Todo “controlador social” sonha com um manual desses.
Por uma feliz – ou para eles infeliz – coincidência, no mesmo dia em que essa noticia foi divulgada, o Estadão publicava na sua página de opinião um artigo do professor Eugenio Bucci, que foi presidente da Radiobrás num dos governos Lula, falando “dos que tanto amam odiar a imprensa”.
Insuspeito de reacionarismo ou fascismo, o professor Bucci provocou celeuma na ala petista que sobrepõe os interesses da militância à informação independente. Um desses jornalistas militantes confessou “certo desconforto” ao ler um texto “com essa alteridade impossível” de “alguém que, como ele, foi militante do PT a vida toda e alto funcionário do governo Lula”, como se isso dispensasse alguém de exercer o senso crítico com a honestidade intelectual que Bucci achou que cabia no caso.
Ele escreveu que a acusação de que a imprensa é “um partido de oposição” incomodou pouca gente. “A acusação era tão absurda que não poderia colar. Numa sociedade democrática, relativamente estável e minimamente livre, os jornais vão bem quando são capazes de fiscalizar, vigiar e criticar o poder. O protocolo é esse. Logo, o bom jornalismo pende mais para a oposição do que para a situação”.
O protocolo é esse, mas convenhamos: as 700 páginas do manual chinês resumem o modelo ideal de imprensa de muitos petistas e suas regras povoarão os sonhos de suas noites de inverno.
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Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de O Estado de S.Paulo. É autor do livro A Ilha Roubada, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez e Armênio Guedes, Sereno Guerreiro da Liberdade (editora Barcarolla)