Peço licença ao leitor para começar este artigo com um juízo de valor: acadêmicos de boa linhagem sabem que não se desloca a realidade de um determinado contexto para ser utilizado à luz de outro momento em benefício próprio com o objetivo de dar sentido à tese que defendem.
A observação é motivada pela matéria “O sonho chinês”, do jornalista Merval Pereira, publicada em sua coluna de sexta-feira (10/1) em O Globo. A reportagem faz parte da cobertura do seminário promovido pela Academia da Latinidade, entidade fundada por intelectuais de diversos países que tem por princípio promover o intercâmbio entre todas as culturas do planeta e difundir a importância da diversidade cultural e linguística latino-americana.
O encontro se realiza em Kuala Lumpur, capital da Malásia, e o jornalista diz que “teve seu ponto alto com a visão de estudiosos chineses sobre o século chinês…”, o século 21, e os estudiosos são os professores Zhang Longxi e Tong Shijun, esse da East China Normal University, de Xangai, e o primeiro da Universidade de Hong Kong. De acordo com a coluna, Zhang Longxi “defendeu a necessidade de integração com o Ocidente citando Lu Xun, a quem classificou como ‘um dos mais radicais pensadores da moderna História chinesa’”.
Virtudes derrotadas
Sem dúvida, Lu Xun foi um dos mais radicais pensadores da moderna História chinesa e defendeu a integração com o Ocidente, só que no sentido diametralmente oposto ao do apresentado pela matéria. Nessa substancial diferença reside o problema da influência que as palavras exercem quando se referem a circunstâncias definidas. Lu Xun era e morreu marxista. Foi o principal articulador da chamada Nova Cultura, que deu suporte à revolução de 1949, mesmo com Lu Xun já falecido há 12 anos. Mao Zedong tinha profunda admiração por esse estudante de medicina que substituiu o bisturi pela pena, tornou-se escritor e um dos líderes do movimento de 4 de maio de 1919, violenta reação promovida pelos estudantes de Pequim contra o Tratado de Versalhes e que tinha por meta se apropriar de valores ocidentais para romper com a moral confucionista que responsabilizavam como a causa da humilhação a que o país se via submetido pelo estrangeiro.
Sobre Lu Xun, o timoneiro da República Popular da China escreveu:
“Surgiu na China uma força cultural fresca, totalmente nova: a cultura e ideologia comunistas, guiada pelos comunistas chineses, ou seja, a concepção comunista do mundo e a teoria da revolução social. Durante os últimos 20 anos, para onde quer que essa nova força cultural tenha dirigido seus ataques, produziu-se uma grande revolução tanto no conteúdo ideológico com na forma (por exemplo, na língua escrita). É tão imponente e poderosa que se torna invencível aonde chega. A mobilização que realizou tem uma amplitude sem paralelo na história da China. E o maior e valente representante dessa nova força cultural foi Lu Xun.”
A propósito, embora fosse um legítimo chinês, provavelmente Lu Xun estaria hoje fazendo certa oposição à rapidez com que as transformações estão ocorrendo na China.
Especulações à parte, Lu Xun passou a defender a “integração” com o Ocidente quando percebeu que não se venciam canhoneiras com virtudes confucionistas de obediência, modéstia, respeito hierárquico e submissão familiar, e que a arrogância imperial dos seus conterrâneos em se acharem muito além de todas as civilizações e torcerem o nariz para o resto – a ponto de concederem à rainha Vitória, da Inglaterra, o título de chefe de tribo durante negociações quando da primeira guerra do ópio o que hoje, a meu ver, não parece de todo equivocado – só resultava em dominação, desvantagem e atraso.
Mais próximo da pirataria
De fato, como citado na matéria a partir da fala do professor Zhang Longxi, Lu Xun disse certa vez: “A raça que tem muitos que não são complacentes consigo mesmo vai sempre andar para frente e sempre terá esperança. A raça que só sabe acusar os outros sem refletir sobre si mesma está ameaçada com iminentes perigos e desastres.” Entretanto, em momento algum a observação significava capitular às desigualdades impostas pelos países invasores. Muito ao contrário, tratava-se de uma advertência para que os chineses despertassem da letargia cultural e tomassem a sua história na mão combatendo com as mesmas armas e afastando de vez os anos de ultraje sofrido em seu próprio território.
A China é um país muito extenso, de influências múltiplas e grandes diferenças de formação e sensibilidade. Hong Kong, por exemplo. Ficou 155 anos sob domínio britânico, seu sistema educacional era o mesmo praticado no Reino Unido e a região era conhecida como o lugar de encontro entre Oriente e Ocidente. Xangai, por sua vez, tem tradição de cidade voltada para o Ocidente como atesta sua história, embora saiba que sempre pertenceu à China, o que Hong Kong ainda tem dificuldade de absorver.
Um episódio para ilustrar a afirmação: terminado meu período de estudo na Universidade de Línguas de Pequim, depois de já ter defendido doutorado sobre a relação entre literatura e sociedade na China, viajei por quase todo o país e decidi voltar para casa por Hong Kong. Fiquei uns dias na cidade de arquitetura feng shui e aproveitei para ir a Macau. Finalmente, no dia do embarque para Paris, onde ainda ficaria para fazer uma pesquisa, apitei. Soou o alarme do controle de segurança de passageiros. Apresentei-me ao funcionário. Mexe e remexe na bolsa de mão, revira bolso, poucos porque estava calor, e nada. Estávamos todos já sendo tomados por um certo embaraço quando, zhao dao le! (achei!). Num estojo havia uma chavinha de fenda, de no máximo três centímetros, usada para apertar os parafusos do óculos de leitura que, gastos, costumavam deixar a armação toda torta. Foi uma alegria, até o mesmo funcionário dizer que ia confiscar a ferramenta.
Argumentei que não era possível porque tinha muita coisa para ler e ainda iria passar por outros países antes de desembarcar no Brasil. Além do mais, já tinha percorrido toda a China com aquele objeto e não tivera nenhum problema. Ao que ele prontamente respondeu, com seu inglês britânico: “Aqui não é a China.” Sem pensar, retruquei: “É, sim, e se acostuma.” Moral da história: quando Lu Xun chamou atenção para a necessidade de se refletir sobre si mesmo sob pena de ficar exposto a iminentes perigos e desastres, não estava pensando do mesmo modo como o reproduzido na matéria. Se a China fosse o Brasil, poderíamos dizer que a integração proposta era antropofágica com o objetivo de deglutir o desconhecido para regurgitá-lo na forma de conhecimento em proveito próprio. Por isso, a ideia do sonho chinês que o texto sugere está muito longe de ser o que Lu Xun defendia. Usá-lo, então, fica mais próximo da pirataria chinesa tão combatida do que da boa linhagem acadêmica.
******
Maria Luiza Franco Busse é jornalista e doutora em Semiologia pela UFRJ