Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um mito

O mito mais renitente sobre as línguas é o de que teria havido, em algum momento, línguas perfeitas. Em cada país – ou cultura – há quem lamente sua decadência. As pessoas estariam falando muito mal, ninguém mais respeita as regras, a gramática precisa “voltar” a ser ensinada, quem sabe até mesmo o latim, já que isso ajudaria a melhorar as coisas, da grafia ao sentido, passando pelas regências e concordâncias. As queixas são generalizadas.

 A primeira versão desse mito que conhecemos é a história de Babel, embora no Livro não se diga que se falava corretamente, mas apenas que se falava uma só língua e todos se compreendiam. O castigo foi a diversidade linguística. Antes disso, o Livro informara que Adão deu a cada criatura um nome adequado. Não se fala em sintaxe, concordância, regência, muito menos em correção, mas apenas na adequação dos nomes, que, diga-se, é hoje um tópico de muitas queixas. 

Na verdade, o mito da decadência (o avesso do da perfeição antiga) vigora em muitos outros campos: os escritores eram melhores, havia verdadeiros filósofos, os políticos tinham mais compostura (e eram melhores oradores), o casamento era para valer, as mulheres, então… etc.

O dado mais curioso sobre a questão é que as queixas são bem antigas. Cícero já se queixava da mesma coisa, e conhece-se o Appendix Probi, que fazia uma lista de palavras corretas e de sua contraparte “errada” (por exemplo, condenava oricla, de que derivou orelha, defendendo auris; condenava rivus, contra rius, de onde obviamente veio rio; condenava socra (sogra) em vez de socrus; defendia ansa contra a forma nova asa etc.). Ou seja, já naquele tempo se faziam listas de erros, que hoje é um esporte bem lucrativo.

O curioso é que, a cada época, os defensores do seu padrão não se dão conta de que ele foi condenado anteriormente (quem deixaria de dizer rioasa ou sogra?). Há queixas gerais, pura repetição de clichês, e queixas específicas, que tematizam questões particulares. As queixas começam pela grafia, sem que os críticos se deem conta de que uma lei pode mudá-la. A “invenção” de palavras consideradas desnecessárias ou o emprego das atuais em sentido “corrompido” também é um alvo muito comum.

Abandono ou mudança?

Há também críticas pontuais, como as que vão contra as mudanças ou variações das regências. É comum ouvir que elas estão sendo abandonadas. O que se quer dizer, interpretando a queixa generosamente, é que elas estão sendo mudadas, porque é óbvio que não desaparecem. Deveria ser evidente que “assistir o jogo”, para ficar num exemplo batido, não implica abandono de regência (afinal, se um verbo é transitivo direto, tem regência), mas apenas sua mudança. O verbo passa a reger diretamente seu objeto, ao invés de ser acompanhado de uma preposição. 

Mais claramente: a nova regência não muda o sentido, ou seja, mantém a semântica que se expressa(va) por outra regência, assistir ao jogo (‘ser espectador’). Nem o sentido muda, nem deixa de haver regência. 

Mas não é raro que alguém diga que essa nova forma significaria que o jogo é tratado, cuidado, assim como um doente por seu médico, porque é isso que significaria assistir seguido de objeto direto. A variação (ou a mudança) na sintaxe não implica necessariamente mudança de sentido.

Outro bom exemplo é “sentar na mesa”, forma bem mais comum do que “sentar à mesa”, defendida pelos manuais e que soa até um pouco pernóstica. Há quem diga que “sentar na mesa” é um erro porque significaria ‘sentar sobre a mesa’ – o que seria ridículo etc. Ora, é óbvio que quem diz “sentar na mesa” não quer dizer ‘sentar sobre/em cima da mesa’, mas ‘sentar ao lado dela’, numa cadeira ou banco. Ou seja, a nova forma tem o mesmo sentido de “sentar à mesa”. 

Outro caso comumente atacado é “namorar com”, que significaria que se namora acompanhado de uma terceira pessoa; “o certo” é “namorar o/a”. Ora, a regência mudou. De fato, “namorar” transitivo direto se emprega muito mais em construções como “namorar um carro / uma bolsa / uma casa” do que em construções como “namorar a donzela / o vizinho”. A mudança de regência não implicou mudança de sentido. Para que “sentar na mesa” significasse ‘sentar sobre a mesa’, seria no mínimo necessário que “em” (que compõe “na” com o artigo feminino) significasse sempre e apenas ‘em cima de’. O que é obviamente uma tolice. Se fosse assim, “morar em Campinas” significaria ‘morar sobre/em cima de Campinas’, “morar numa casa” significaria ‘morar sobre/em cima de uma casa’ etc.

Outro caso batido é “preferir do que”, expressão condenada pelos Probi de plantão, porque seria redundante, já que “preferir” já significa ‘gostar mais do que’ (por óbvio, a expressão “preferir mais do que” tem dupla condenação). Ora, o sentido de “preferir” continua exatamente o mesmo, seja na construção “preferir a”, seja na alternativa “preferir (mais) do que”. O apelo à redundância é bem interessante, já que ninguém se lembra dela ao defender concordâncias como em “os meninos gostam”, construção na qual há três expressões de plural.

Em suma: as línguas evoluem (no sentido darwiniano), isto é, adaptam-se, mudam, seja seguindo seu “DNA”, seja submetendo-se a pressões sociais. Pode-se dizer talvez que se trata de DNA quando mudanças de hoje repetem mudanças antigas, como proparoxítonas tornando-se paroxítonas (“áquila -> águia”, e “abóbora -> abobra”, donde “abobrinha”), seja porque as mesmas mudanças ocorrem em línguas derivadas da mesma fonte (há fenômenos no português que repetem os do francês: “autoridade : otoridade :: autorité (escrita) : otoritê (pronúncia)” etc.). 

Línguas não decaem. Apenas mudam. Inexoravelmente. Como quase tudo. Pode-se ter saudade das formas antigas. Não é proibido, evidentemente. Mas a precariedade dos julgamentos depõe contra os saudosistas. Os argumentos frequentemente são ridículos. Principalmente porque eles também empregam formas que já foram condenadas e consideradas decadentes.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas