Na década de 1920, um grupo de historiadores franceses – o Grupo dos Annales – escreveu manifestos, fundou uma revista e estabeleceu estratégias universitárias para fazer triunfar a ‘história-problema’. Um dos expoentes desse grupo, Lucien Febvre (1878-1956), esclareceu que eles não queriam escrever trabalhos de história como se fossem velhotas que tecem tapeçarias, ou seja, com pequenos pontos de lã. Era preciso deixar de lado datas, fatos, nomes, considerados miuçalha inútil, e se debruçar sobre processos, problemas, temporalidades amplas.
Vários adeptos dos Annales baniram personagens e acontecimentos de seus trabalhos, trazendo para o primeiro plano a análise de conjunturas de alta e baixa de preços, tendências seculares de revolta social, objetos como o mar, o clima, as estruturas familiares. Os críticos dessa história repaginada se perguntaram em que ela era, afinal, diferente de disciplinas mais jovens, como a economia, a sociologia, a antropologia, e temeram pelo desaparecimento da especificidade do conhecimento histórico.
As questões trazidas pelo grupo dos Annales já eram um indício da crise dos paradigmas que, anos depois, abalaria várias formas de conhecimento. Daí em diante, poucos historiadores acreditariam ser possível, por meio da pesquisa sistemática, reconstituir o passado com exatidão. Não caberia mais à narrativa histórica recriar ou devolver o passado, mas aproximar-se dele e tentar compreendê-lo.
Em geral, o grande público não gosta dessa história-problema, que lhe parece descarnada e insípida. A voga das biografias pode ser explicada, em grande parte, como expressão de certa nostalgia em relação a formas mais tradicionais de narrar a história, com certezas e detalhes, bem como da curiosidade natural por enredos e futricas – os tais pontinhos da tapeçaria.
A volta das biografias
Considerada um gênero menor por historiadores acadêmicos e mais profissionalizados, a biografia voltou com força total conforme a sociedade se pautou mais e mais pelo consumo, e o individualismo levou a melhor sobre formas coletivas de ação. Há biografias e biografias, e não é fácil fazer uma que seja boa, por vários motivos. Como diz o verso de Ferreira Gullar, musicado por Paulinho da Viola, a vida não é uma equação, não pode ser resolvida: “A vida, portanto, meu caro, não tem solução”.
O biógrafo se debruça sobre a vida do outro, dá-lhe um sentido que, com frequência, não teve, ressalta nela uma lógica que lhe é alheia. Talvez por isso a boa biografia seja, muitas vezes, aquela que transcende o indivíduo e elucida a época. Como a escrita por Charles Boxer (1904-2000) sobre Salvador Correia de Sá (1602-1688), que é também uma história da importância do oceano Atlântico no império português do século 17.
Escrevi uma pequena biografia do poeta Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), sobre quem há pouquíssima documentação, e resolvi explicitar as lacunas: a biografia não é ficção; tenta ser precisa, mas não pode deixar de lado a dúvida; lança mão da criatividade, mas, quando não tem certeza, cogita em vez de inventar.
Há hoje no Brasil uma polêmica sobre o direito de se escrever biografias, mesmo as não autorizadas. Defendo esse direito, em nome da coerência profissional e da liberdade de expressão. Mas reconheço que o cuidado há de ser redobrado quando o biografado está vivo. Primeiro, porque o interesse pela ‘vida dos outros’ tem implicações muito complexas – quem não se lembra do maravilhoso filme alemão com esse nome? –, sendo necessário fugir do vulgar, do superficial, e ressaltar o que de fato interessa à compreensão.
Depois, porque posso imaginar a perplexidade dos biografados vivos ao se deparar com as soluções que seus biógrafos deram aos impasses e dilemas que lhes pontuaram a vida. Os mortos, ao menos, estão protegidos porque ignoram, até prova em contrário, qual o seu destino póstumo cá na Terra.
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Laura de Mello e Souza é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo