Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Para além da inveja do tênis

Na década de 1990, um sintoma aterrorizou o país: cresciam relatos de meninos que agrediam ou até matavam outros, um pouco mais ricos, para roubar um par de tênis de grife, no que parecia ser o paradigma do crime por motivo fútil. Cunhei a expressão “inveja do tênis”, para explicar por que algo tão supérfluo, vaidoso ou vão quanto um item de conforto pode mobilizar paixões que a luta por grandes necessidades da vida nem sempre desperta. Sustentei que as “causas nobres”, como a educação, a saúde, a segurança, o transporte, o emprego, não conseguiam gerar o investimento psicológico que um artigo de grife suscita. O caso dos rolezinhos traz de novo à tona esse tema, mas numa chave bem diferente.

Lembremos as manifestações de 2013. Em julho de 2011, Juan Arias, que há anos cobre com competência para o jornal espanhol “El país” o que acontece no Brasil, lamentava: por que investimos tanta energia na Parada Gay – que hoje, em São Paulo, rivaliza com o carnaval carioca em mobilização de libido – e não depositamos sequer uma parcela disso na luta por questões prementes, como poderiam ser as que mencionei acima? Pois as manifestações de maio e junho de 2013 devem ter realizado alguns sonhos do correspondente espanhol. Elas marcaram uma grande novidade em nosso país, com multidões indo às ruas para traduzir suas carências, suas necessidades, em direitos, em exigências, em política. Ponto para o Brasil.

Já os rolezinhos parecem voltar à lógica do tênis. O que os jovens pobres vão fazer nos shoppings é clamar por sua integração na sociedade de consumo. Querem, como todos os de sua idade, desfrutar do prazer. Há um charme nisso, que inclui o uso do verbo “pegar” (que na sua polissemia herda o lugar de outra palavra ambígua, que os mais velhos não entendiam, o “ficar” de dez anos atrás) nas convocações que circulam no Face. Mas algumas grandes mudanças precisam ser apontadas – e celebradas.

Terminou a brincadeira de injustiça social

Primeira: os rolês não são ações individuais, mas coletivas. A ação coletiva tem mais chances de construir o futuro, de mudar o mundo. Segunda: as convocações claramente repudiam o crime. Os rolês são chamados para serem atos não-violentos.

Recomendo o fascinante filme “O mordomo da Casa Branca” (2013), que mostra décadas de preconceito racial vistos por um mordomo que serve a sucessivos presidentes dos Estados Unidos. Destaco uma cena. Em 1960, vários jovens negros entram numa lanchonete do Sul, sentam-se do lado proibido para os “de cor” e pedem para serem atendidos. Não o são. Acabam espancados por brancos da elite local. O pedido – educadíssimo, sem violência alguma – para “ser atendido” num lugar em que eles não são bem-vindos aproxima o caso norte-americano do brasileiro. Uma diferença é que no Brasil a segregação não é legal – mas mesmo assim existe. Outra é que nossos jovens pobres estão indo aos shoppings para rir, brincar, ocupar o espaço com sua alegria.

Daí, terceira característica: os rolezinhos são atos políticos. Com ou sem consciência disso, os participantes se reúnem – em vez de atuar sozinhos – para exigir direitos. É incrível o poder da união. Longe do que o pensamento mais conservador teme, unir forças não leva ao crime, mas afasta dele. Soluções individuais, para problemas coletivos, são as piores. São elas que levam alguns a roubar, sonegar, fraudar para resolver um problema que não é apenas deles. Já, quando a solução se torna coletiva, pode até haver a opção quadrilha; mas esta é sempre limitada: a união de bandidos não resolve problemas sociais, apenas melhora a vida de parte deles. Quando se ganha escala numa mobilização, a tendência é reivindicar soluções para todos. Não há dúvida de que a escala, como o elefante da cantiga, incomoda muita gente. Mas é esse incômodo que coloca as questões na agenda política.

Tenho plena compreensão do medo que muitos sentem quando veem entrar uma multidão de desconhecidos no shopping. Posso me colocar no lugar deles. Mas o ser humano é dotado de razão. Não pode pensar com base só no medo. A questão não é mais, apenas, a desigualdade social clamorosa, a intensa exclusão dos mais pobres, aquilo que Cristovam Buarque chama há décadas de “apartheid social”. Até aí, trata-se de fatos da realidade. A questão é que, desde a democratização de 1985, essa desigualdade foi-se tornando injustificável e intolerável. Amélia, “que achava bonito não ter o que comer” (1942), é hoje apenas um verso do passado. O playboy brasileiro da opereta “La vie parisienne” (1866), ladrão e corrupto no país, homem fino na Europa, não faz mais rir. Pobres, negros, mulheres, indígenas e gays querem a plenitude de direitos, já. Passou o tempo de qualquer discurso que lhes peça paciência. Eles não acreditam mais em promessas para o futuro. Por isso é tão significativo que a bola da vez sejam os rolês. Se há algo que caracteriza o prazer, é sua imediatez. Quer-se prazer já, não daqui a dez anos. A diversão que não rolar hoje, não é a mesma que poderá rolar sábado que vem – menos ainda, quando estiverem casados, empregados, com filhos.

Um mundo acabou. Durante décadas, nos protegemos dele atrás de grades – no prédio ou no shopping, ou as grades simbólicas da escola, do hospital e do carro melhores. Isso não tem mais como durar. A boa nova é que a exigência de que isso mude, seja em junho de 2013, seja em janeiro de 2014, tem-se feito dentro da lei e com nenhuma ou pouquíssima violência. Mas o tempo urge. A brincadeira de injustiça social terminou. Quem quiser continuar jogando esse jogo só vai gerar problemas – para si e para os outros.