Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rolezinho e a desumanização dos pobres

 

O rolezinho, a reunião de jovens e adolescentes em shoppings que nasceu na periferia de São Paulo e já se espalhou por outras partes do país, virou o assunto do verão deste 2014 de eleições e Copa. Um arrastão de palavras de ordem, à direita e à esquerda, tomou o debate e colonizou as discussões com conceitos confusos, fora de lugar. De repente, festas de funk ostentação viraram manifestações de marxistas culturais contra a civilização ocidental e as reações a elas, vindas de gente tão pobre quanto os jovens, uma prova irrefutável do apartheid brasileiro.

De fato, as reuniões de lazer e a reação a elas foram contaminadas pelo debate político que acontece nas áreas de classe média e classe média alta. Elas foram simplificadas, estereotipadas. O debate se reduz aos exageros, criando adversários irreais e estereotipados: ou as pessoas são elitistas ou comunistas. Mas o mundo real, bem, esse é bem mais complicado. E, no meio desse debate maluco, os sujeitos do rolezinho foram desumanizados e se tornaram categorias para defender posições no debate histérico que vem se desenhando para este ano.

Ninguém ouve ou sabe o que esses jovens pensam, mas praticamente todo mundo no Facebook, no Twitter, em algumas colunas nos jornais e nas revistas sabe o que eles deveriam pensar. Ninguém sabe qual a intenção que eles têm com esses eventos, mas, do lado de cá do rio, todo mundo já tomou as decisões por eles. Pouca gente do centro expandido já visitou o shopping Itaquera ou Campo Limpo, mas não faltam pessoas que já decidiram que ou eles são nobres centros contra a barbárie periférica ou símbolos poderosos da segregação à brasileira.

Esse texto é dividido em três partes. Ele abre com uma história pessoal, avança para algumas hipóteses sobre o rolezinho e termina com pinceladas sobre as reações aos encontros. Mas o principal objetivo é tentar oferecer um caminho para a discussão que devolva às pessoas, façam ou não rolezinho, a humanidade que foi perdida na fúria das discussões. Na área delimitada pelos rios Tietê e Pinheiros, a periferia ainda é um sujeito desconhecido. É uma espécie de Cazaquistão que fala português.

O tédio

Entre 1995 e 1999, eu e os meus amigos passávamos as semanas esperando o dia em que finalmente um shopping seria construído no terreno em que, por muito tempo, funcionara uma fábrica de produtos químicos. O terreno estava abandonado fazia bastante tempo, e sempre surgiam boatos de que um grupo teria comprado o terreno para erguer, nas palavras de um dos jornais da cidade, “um moderno centro de lazer e compras, com direito a McDonald’s”. Quando ele fosse erguido, ficaria a 20 minutos a pé de casa. Naquele pedaço da Grande São Paulo, na periferia de Caieiras, na divisa com Franco da Rocha, um shopping era tudo o que a gente poderia aspirar na vida. Com McDonald’s, então… Seria o nosso shopping. Na nossa área.

Mas esse shopping nunca foi construído, e os nossos dias seguiram iguais. Quando estávamos no começo da adolescência, nossa diversão era jogar bola na rua de paralelepípedo. Eu sempre invejava as crianças que moravam em Pirituba, um bairro na periferia de São Paulo onde minha avó morava, porque as ruas de lá eram asfaltadas, as crianças não perdiam as unhas do pé por causa de uma pedra mal colocada e o esgoto não passava no canto da rua e levantava aquele desagradável odor de urina fortalecida pelo sol quente do verão. Mais velhos, eu e os meus amigos organizávamos algumas festas na casa de um, na casa do outro, e todos torcíamos por uma quermesse de igreja. Mas nunca saíamos do bairro.

A Avenida dos Estudantes, no centro de Caieiras, não era muito receptiva. Havia áreas bem marcadas para cada “tribo”: quem gostava de música eletrônica ficava no começo da avenida, quem adorava rock, no final, quem curtia sertanejo, no meio, quem gostava de axé ficava numa rua ao lado da avenida. Mas os meus amigos gostavam de rap, de pagode, e não havia muito espaço no centro de Caieiras para quem curtia essas músicas e se vestia como Mano Brown. O jeito era ir para Osasco, Perus, Pirituba, para algum lugar onde fosse possível se divertir com os amigos, conhecer umas meninas, beber alguma coisa. Só valia a pena ir para o centro da cidade se fosse com carro. E com muita gente. Caso contrário, era constrangedor.

Uma vez, a gente foi até o centro, a pé, com muita gente – mas, ainda assim, em número menor do que as outras tribos. Fomos parados pela guarda municipal porque estávamos em bando, segundo um deles. Tomamos uns tapas na costela, e fomos liberados. Ao chegar em casa, minha mãe me esperava, rindo, dizendo que uma das alunas dela, no colégio em que ela dava aula, no centro da cidade, tinha ligado dizendo que “o Leandro está andando com bandidos”. Naquela época, eu tinha uma bolsa de estudos na escola em que minha mãe dava aula (só havia duas escolas particulares na cidade). E a menina estava na minha sala. Minha mãe perguntou a ela como eram os bandidos com quem eu andava, e ela descreveu o Zé Luís, vizinho e um grande amigo de infância. Nós dois rimos – agora, de tristeza. Os pais dele eram do Piauí, e ele era mulato. Aliás, naquela turma do bairro, eu era o único cara branco. Os meus amigos todos, assim como boa parte do bairro, era formada por negros e mulatos. Ao se vestir como Mano Brown, Zé Luís, um sujeito com horror a crime, virou ladrão.

Quando sai da cidade para cursar jornalismo, em São Paulo, já tinha perdido o contato com os meus amigos de bairro. Eu passava a maior parte do tempo estudando. Em parte por causa da saudável obsessão familiar com estudos, em parte por causa de uma leve melhora econômica na situação de casa, que deu mais espaço no orçamento para livros e me tirou do trabalho adolescente, e em parte porque eu percebi, ao estudar no centro da cidade, que a faculdade talvez fosse uma alternativa viável para buscar outras coisas na vida que não passassem por esgoto ou batida policial. Muitos dos meus amigos ficaram nas sucateadas escolas estaduais do bairro e só pensavam em conseguir um emprego logo para que finalmente pudessem comprar roupas, tênis, o primeiro carro, telhas para a casa, blocos para o muro alto, geladeira. Eles tinham outras urgências, outras necessidades, outras questões na vida.

Uma vez, no meio da faculdade, cheguei de sandália, cabelo Blond Power e camisa rasgada na casa dos meus pais. Eu morava numa república no centro de São Paulo, com amigos, e contava moedas (por causa do orgulho renitente e de uma busca teimosa por independência). Meus amigos de bairro estavam com carros tunados, tênis bonitões, na esquina de casa. Parei para conversar com eles. Pareciam rappers de filmes americanos. Eles me sacaneavam, dizendo “pô, foi fazer faculdade e virou mendigo, Yellow?” Como eu era o único branco na rua, eles me chamavam de Yellow porque uma professora de inglês não era boa em ensinar cores. A gente conversou sobre a vida, as famílias, os problemas. Vários deles tinham votado pela primeira vez em 1998 – e no Maluf. Segurança era sempre um assunto sério. Alguns deles eram guardas de mercado, operários na fábrica de papel, motoristas de caminhão, operadores de telemarketing. Naquela época, eles só tinham uma preocupação: mostrar que tinham melhorado de vida e proteger as casas de violência. Mas, aos finais de semana, eles e seus carros com som bem alto, ocupavam o centro da cidade tocando rap no último volume. Mas, agora, a guarda municipal já não tinha como pegar ninguém…

O rolezinho

Quando surgiram as primeiras notícias sobre os rolezinhos nos shoppings da periferia de São Paulo, fiz uma viagem particular no tempo – e acabei lembrando de Chopis Centis, música dos Mamonas Assassinas, do meio da década de 1990, que já falava de rolezinho. O grupo, aliás, é de Guarulhos – uma das cidades em que os rolezinhos 2013/2014 já aconteceram. É impressionante a semelhança daquela década com essa.

“Eu ‘di’ um beijo nela
E chamei pra passear
A gente ‘fomos’ no shopping,
Pra ‘mó de’ a gente lanchar

Comi uns bichos estranhos,
Com um tal de gergelim
Até que tava gostoso,
Mas eu prefiro aipim

Quanta gente,
Quanta alegria,
A minha felicidade
É um crediário
Nas Casas Bahia

(…)

Esse tal “Chópis Cêntis”
É muicho legalzinho,
Pra levar as namoradas
E dar uns rolêzinhos”

Aqueles adolescentes que agora estampam jornais e sites, em bando, são uma versão mais rica e numerosa dos meus amigos de Caieiras na metade dos anos 1990 – e de tantos outros jovens e adolescentes da Grande São Paulo e da periferia da capital. Sim, mais rica. É sempre bom lembrar que o desemprego naquela década superava os dois dígitos e mal havia crédito para erguer ou terminar as próprias casas. Apenas na metade dos anos 2000 é que os bairros da periferia de São Paulo começaram a perder aquela tonalidade laranja dos tijolos, típica das casas sem acabamento. Ninguém na minha época podia sonhar com um Mizuno de mil reais, claro.

Essa reportagem do iG resume bem o que era um rolezinho para a gente: se divertir um pouco e tentar ficar com algumas meninas. A diferença é que eles, hoje, podem ir aos shoppings e podem convocar os outros amigos pela internet. Nós, não.

Primeiro porque os shoppings menos constrangedores naquela época eram o West Plaza, numa Barra Funda cheia de galpões industriais abandonados, e o Shopping da Lapa, ao lado da estação de trem. Mas os dois eram distantes e nem todo mundo tinha dinheiro para pegar o trem até São Paulo. Além do constrangimento: por que ir a um shopping se você mal tinha dinheiro para chegar até ele? Segundo porque não tinha internet, e ai entra um aspecto novo: é possível convocar mais gente para os encontros. E, ao convocar mais gente, o que acontecia na rede passa a ocupar as ruas. Parece óbvio, mas nem sempre o óbvio é óbvio. Os rolezinhos são uma versão, amplificada pelas redes sociais, do que sempre aconteceu nas periferias da cidade.

E, ao amplificar o volume, eles também chamaram a atenção.

Os novos rolezinhos, portanto, acontecem num novo contexto, mas com um mesmo objetivo. A internet deu visibilidade e tamanho a algo que sempre aconteceu em escala menor, sem ser visto ou noticiado dos rios para cá. O boom do crédito, a diminuição do desemprego e o crescimento da classe C levaram os shoppings até as periferias da cidade. Os rolezinhos aconteceram, todos, da ponte pra lá: shopping Itaquera, shopping de Guarulhos, shopping Interlagos, shopping Campo Limpo. Eles não chegaram nem ao shopping Eldorado, talvez um dos centros comerciais mais híbridos de São Paulo – ele fica ao lado da ponte e recebe gente tanto da periferia quanto das áreas mais centrais da cidade. Além disso, esses jovens têm mais emprego, mais renda e podem comprar bonés de 200 reais em várias parcelas mensais (ou tem pais que querem dar aos filhos o que não tiveram, inclusive bonés de 200 reais. Isso não acontece só da ponte pra cá). Os rolezeiros são os filhos da classe C, do pequeno milagre econômico da segunda metade da década passada. Deng Xiaoping, o homem que introduziu o comunismo com toque capitalista na China, dizia que enriquecer é glorioso. Na periferia de São Paulo, consumir é glorioso.

Só que a classe C e as periferias das grandes cidades não são blocos homogêneos. Eu escrevi sobre isso em 2012, no The Pompeia Times, quando as pessoas insistiam em dividir a cidade em blocos azuis e vermelhos para celebrar (ou maldizer) o resultado eleitoral. Reproduzo alguns, porque eles também servem para o rolezinho:

“O que se pode tirar dessa situação? Mais perguntas do que certezas. Eu tenho algumas hipóteses. Uma delas é que a desigualdade em São Paulo não se dá apenas na base centro-periferia, no macro. Essa divisão também se dá dentro de cada área da cidade, no micro. Em cada periferia há um centro urbanizado, com uma classe média ou média alta que prefere ficar nestes bairros por razões que só as pessoas que moram lá sabem. Além disso, em algumas áreas do centro expandido, delimitadas pelos rios, há regiões e famílias muito pobres que moram em cortiços, prédios antigos, mas trabalham perto das casas delas.

Outra hipótese é a dependência das pessoas do Estado. Toda generalização é perigosa e enganosa, mas existem algumas tendências que podem merecer mais atenção. Talvez quanto mais dependente do Estado, mais as pessoas tendam a votar no PT. Quanto menos dependentes do Estado, mais tendam a votar no PSDB – e isso não necessariamente está ligado à renda, mas a uma percepção sobre a vida , sobre valores.

Observo muito isso quando vou ao Jardim Nardini, na periferia de Pirituba, onde passei muitas férias na vida, na casa dos meus avós. Quem podia trabalhar de carro tendia a votar nos candidatos tucanos. Quem tinha de trabalhar de ônibus, nos petistas. Muitas das pessoas com carro que conheci não valorizavam os estudos, mas ganhos imediatos com a renda do trabalho. Muitas das pessoas sem carro tinham obsessão com a escola e preferiam economizar dinheiro para investir na faculdade ou na escola particular dos filhos. Isso fez com que, em muitos casos, os destinos fossem diferentes: as pessoas sem carro se mudam para áreas centrais e levam com elas o voto petista. E as pessoas com carro continuam na periferia, com seus votos tucanos.

Eu poderia listar uma série de outras hipóteses. Já vi bairros inteiros votarem em um candidato por causa de uma obra. O Nardini, por exemplo, foi malufista durante muito tempo, por causa da canalização do córrego fétido que cortava o bairro. E se tornou petista com o bilhete único. O vermelho da Baixa Augusta também pode ter explicação nas leis dos prefeitos Serra e Kassab, que colocaram a diversão de adultos no limite da sobrevivência. E há, claro, os valores. Em algumas regiões operárias antigas da cidade, como Mooca, Lapa, Santo Amaro, Ipiranga, há uma certa obsessão, saudável, em vencer pelo trabalho, não pela malandragem. Isso talvez explique por que o PT terá dificuldades por longos anos para voltar a vencer nestas áreas. O mensalão é visto como um atalho, uma maneira de ter uma vida fácil, sem trabalho”.

A reação das pessoas que frequentam os shoppings das periferias aos rolezinhos não passa nem pela tese de luta de classe, como algumas pessoas à esquerda vem dizendo, nem pela resistência à concretização dos projetos malévolos dos marxistas culturais para dominar o mundo, como algumas pessoas mais à direita vem enfatizando – e vou lhes poupar dos links porque, afinal, o papel do Oene também é dizer o que você não precisa ler. Os argumentos principais das pessoas mais à esquerda é que os rolezinhos são uma manifestação política com o objetivo de ocupar os espaços que são negados aos pobres pela sociedade de consumo. O problema é que não há nenhuma bandeira ou sinal nesse sentido, como nota Vinicius Torres Freire em um bom texto na Folha de S.Paulo. Os rolezinhos não vêm com faixas ou bandeiras. Não há crítica ao consumo, mas elogio às marcas. Essas pessoas já frequentam os shoppings da periferia, onde os rolezinhos acontecem, em grupos pequenos. É difícil ver reivindicação de espaço em um espaço que elas já frequentam. E isso também complica os argumentos da baderna, à direita. Não há crítica ao sistema. Apenas a vontade expressa em roupas de marcas em participar ativamente dele. Os motivos, como mostram uma convocação do rolezinho, são bem mais singelos:

“GERAL SE TROMBAR NO PLAYLAND AS 15:00
Bora lotar o aricanduva!!! para o povo não achar q eu estou querendo promover arrastão… vo logo colocar aqui!!!
eu quero organizar esse evento para apenas ajuntar a galera ,se conhecer e fazer novas amizades :P , não quero promover arrastão ou briga… não to fazendo esse evento para atrasar lado de ninguem…
VAMOS QUE VAMOS NA PAZ E ALEGRIA!!!”

O rolezinho não é uma questão simples, mas acho que podemos descartar facilmente as teses extremadas da esquerda e da direita porque elas não encontram nenhum respaldo da realidade. É difícil ver protesto político na vontade de usar um Mizunão de mil num espaço da periferia da cidade que já é frequentado, individualmente, por essas pessoas. E é ainda mais difícil ver marxismo cultural no funk ostentação. É muito difícil taxar de elitismo uma ação de pessoas da periferia contra pessoas da periferia. Como, afinal, acusar um morador de Itaquera de elitismo contra o filho do seu vizinho, também morador de Itaquera?

Talvez os problemas com o rolezinho passem por outras chaves. A primeira chave é etária. Jovens, sejam eles de onde forem, vão sempre desafiar os pais, os adultos, quem quer que seja. Faz parte do jogo, e desde Chico Buarque ladrão de carros, passando pelas estripulias alcoólicas do jovem George W.Bush, não importa a classe social ou o país, jovens e adolescentes estão dopados por hormônios. Faça um exame de consciência e pense no que você, do alto dos seus 16 anos, aprontava por ai. Ou, como diz a página de outro evento do rolezinho, desta vez agendado para o shopping Penha:

“Vamos ai pessoal zoa muito conhece novas pessoas e catar muitas minas e curti muito e sem roubo ai so curti mesmo”.

O objetivo é diversão. Aqui ou em qualquer lugar do mundo, aliás, como os New Radicals, que não são radicais, já anunciavam num clipe clássico dos anos 90.

Outra chave é a que abre as portas da diversidade da periferia. Algumas pesquisas mostram que pessoas que moram no limite de uma favela, mas não no seu coração, querem manter toda a distância possível das pessoas que moram nas áreas mais pobres daquela comunidade. Um emprego, uma roupa, tudo é uma marca de progresso, de ascensão, em áreas todas niveladas pela miséria, pelo esgoto a céu aberto, pela falta de educação. Até a música pode virar uma ferramenta. Em Caieiras, as tribos se organizavam por músicas porque, claro, a música que você ouve determina a que parte da periferia a qual você pertence. O simples fato de escutar rock e não rap, lá nos anos 1990, te colocava em outra parte da periferia – igualmente pobre, mas talvez mais respeitável. Eu tinha um vizinho, mulato, que nunca se misturou com a gente porque ele gostava de rock. E quem gosta de rock, ele parecia dizer, era melhor e mais culto do que o restante das pessoas do bairro.

A última chave de compreensão é a cadeia de preconceito e diferenciação – uma variante da segunda chave. Os vendedores desses shoppings da periferia, tão pobres (ou não suficientemente ricos) quantos os seus clientes que vão comprar os tênis caros com dinheiro vivo, torcem o nariz para aquelas pessoas que são tão próximas – mas de quem elas gostariam de manter distância. Os adolescentes do funk ostentação, por sua vez, compram tênis caríssimos para se distinguir dos colegas de bairro que ainda não conseguiram empregos ou renda para comprar um Mizunão de mil reais. Quando pego o trem para Caieiras, essas redes de diferenciação ficam claras. Não é só em Higienópolis que as pessoas evitam o contato com a “gente diferenciada”. Se há algo constante no mundo é a necessidade de uma boa parte das pessoas em se colocar em rankings para mostrar que, por alguma razão, é melhor do que a multidão. O cara do funk ostentação não quer ser confundido com o vizinho camelô.

Aliás, a tentativa de fazer um rolezinho-protesto no shopping JK Iguatemi só mostrou o tamanho da nossa ignorância sobre os rolezinhos. Quem mora longe se sente humilhado num shopping como aquele. Não faz sentido fazer um role de ostentação em um lugar em que você nunca conseguirá se exibir para além da enganadora loja da C&A na fachada. A reação do shopping, colocando seguranças privados e pedindo liminar na Justiça, só mostra como também uma parte da indústria do consumo não compreendeu seus clientes e toma reações desmesuradas. As lojas que você coloca, a maneira como organiza o espaço, os acessos aos centros de compras. Tudo isso já serve como uma barreira invisível e delimita claramente quem pode ou não frequentar esses espaços. Até hoje, confesso, ainda me sinto incomodado ao entrar no shopping Iguatemi, na Faria Lima, para ir ao cinema. O passado sempre volta dizendo “tem certeza que você pode entrar nesse lugar?”

Afinal, não há nada de novo debaixo do sol, como já dizia um trecho do Eclesiastes, da Bíblia, e como mostram os livros dos escritores ingleses e americanos que viram fenômenos semelhantes no século passado. “Jó”, de Joseph Roth, é um bom retrato dos imigrantes e suas agruras para se distinguir em Nova York. Os primeiros capítulos de “O Chalé da Memória”, do historiador Tony Judt, compõem uma excelente análise sobre a dor e a delícia de viver em uma Itaquera londrina no começo do século 20. E,claro, compre “Avenida Dropsie”, de Will Eisner. Os quadrinhos mostram de uma maneira bonita, e triste, a lógica da diferenciação no Bronx. Cada leva de imigrante era discriminada pela geração anterior de imigrantes.

Sociedades com mobilidade social, em profunda transformação, são interessantíssimas e recusam simplismos – não importa a cor da bandeira ou o volume da gritaria nas redes sociais.

A reação

A reação aos rolezinhos, por outro lado, mostra uma história bem mais simples do que o fenômeno, em si. E essa história diz mais sobre o momento em que vivemos do que sobre centenas de adolescentes que organizam uma festa pública no único espaço seguro perto da casa onde eles moram e sobre as pessoas, tão pobres quanto eles, que comem pizza de picanha e tem horror a som com volume alto dentro de um shopping.

Os rolezinhos são grandes festas em espaços privados. Quem conhece a periferia de São Paulo sabe que existem pouquíssimos espaços em que seja possível fazer uma festa, reunir os amigos ou almoçar fora de casa num domingo. O nó é que os shoppings dos rolezinhos são espaços privados e bem organizados no meio de áreas violentas e pobres. E eles são frequentados tanto por jovens querendo fazer um rolezinho quanto por famílias que querem levar a avó para comer no McDonalds pela primeira vez na vida. Como mostra essa matéria do UOL, o Brasil é recordista mundial de venda de McDonalds. É uma tensão séria, difícil de resolver porque há poucos lugares – e todos eles são privados e estão sob disputa. Há vários grupos de pessoas querendo fazer vários usos distintos dos mesmos centros comerciais.

Para complicar, esses shoppings dos rolezinhos são bunkers ainda mais fechados do que um shopping como o Cidade Jardim, onde só se entra de carro. São bunkers porque a desconfiança é maior. Porque a violência é maior. Basta ver que, em Campinas, no segundo final de semana do ano, 12 pessoas foram assassinadas na periferia da cidade. Para garantir o básico, como segurança e algum conforto, esses shoppings são áreas cercadas e fortificadas. E, nesse cenário de desconfiança, as pessoas que esses locais preferem receber são aqueles mais previsíveis – famílias, basicamente. Isso justifica policiais, liminares e barrar a entrada de pessoas? Não. Mas ajuda a entender.

Ainda me recordo do tamanho da minha surpresa quando, faz alguns anos, andei pela primeira vez no Itaim Bibi. Notei, sem entender nada, que várias daquelas casas tinham muros baixos ou não tinham muros. Isso vem mudando, por causa da preocupação das pessoas com a segurança. Mas, em vários bairros da periferia, o muro alto é item de primeira necessidade. É a obra das obras, e isso já vem de bastante tempo, bem antes da construção dos prédios de classe média que se assemelham a uma caixa forte, dado o tamanho da preocupação com segurança. Há um bom livro sobre isso, da antropóloga Teresa Caldeira, chamado Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. No livro, ela analisa como a desconfiança e a segregação são peças comuns a várias áreas da cidade e acabaram ganhando forma visível em muros e grades. Na periferia, em que a violência é altíssima, isso ganha os famosos “contornos dramáticos”. Em um artigo sobre o livro, a professora de Antropologia da UFRJ, Andréa Moraes Alves, resume bem a obra:

>> Caldeira apresenta narrativas sobre o crime e os criminosos, mostrando como elas ressignificam a experiência do crime e reproduzem estereótipos sobre a diferença. O discurso sobre o crime é um discurso classificatório que estabelece fronteiras nítidas entre o bem e o mal. Ponto alto da pesquisa de Caldeira, essa parte do livro consegue, através das entrevistas, mostrar esse princípio classificatório em funcionamento. A fala da senhora de classe média, imigrante da Itália, que se refere a outros migrantes mais recentes, os nordestinos, como responsáveis pelo aumento da criminalidade no seu bairro, é um bom exemplo dessa dinâmica de criação de distanciamentos. O princípio classificatório é capaz de transformar a categoria que estaria mais próxima do narrador – pela condição de migrante –, mas que é diferente – de outra classe social –, em um outro distante e condenado. Ainda mais interessante no trabalho, é que essa criação de fronteiras não se limita a um universo social, Caldeira mostra como o mesmo mecanismo atua entre moradores da periferia e de bairros de elite da cidade de São Paulo.

Em áreas muito violentas, todo mundo é uma ameaça – inclusive o vizinho ou o cliente que escuta som alto. Basta que ele seja um pouquinho diferente. Isso acontece em outras áreas de São Paulo, mas ganha força na periferia. Quando algo parece sair do escopo, a primeira reação das pessoas é apelar para a força. No caso dos shoppings, para a Justiça e para a polícia. Sem mediação, sem diálogo, sem acordo, sem entender minimamente o que ou quem está acontecendo. Na dúvida, é suspeito. Os conflitos, as diferenças, são resolvidos com base nas reações exageradas.

Qual o próximo passo? Os policiais passam a agir da forma como estão acostumados a se comportar: na base da força bruta. Eles se comportam como uma força de segurança preventiva, a mando de uma organização privada, para reprimir pessoas que não cometeram nenhum crime. E cometem descalabros. Há o caso, bizarro, do menino que foi comprar aliança e acabou multado e agredido. Isso não é novo. Abundam notícias sobre excesso de força policial tanto na periferia quanto no centro – como bem mostraram as reações às manifestações de junho. Não é possível esperar outra reação de uma organização treinada para agir sempre com muita força, ao mínimo sinal de que algo saiu fora do manual. Também não é nenhuma novidade que a relação da polícia pública com organizações privadas é íntima – e complicadíssima. Há centenas de policiais que trabalham como seguranças de shoppings, bares e restaurantes nas horas vagas. Provavelmente, alguns deles ganham mais desses shoppings do que da sociedade – e tem um compromisso maior com o shopping do que com a sociedade.

A Justiça, que precisa responder às liminares pedidas por shoppings que querem controlar o fluxo das pessoas, também está confusa e longe de um consenso. Ao rejeitar um dos pedidos de “proibição do rolezinho” em um shopping de Campinas, o juiz entendeu que ”não houve demonstração inequívoca de que os réus poderiam praticar atos que, por si só, fossem aptos a despertar o justo receio de turbação ou esbulho iminentes”. Mas decisões favoráveis aos shoppings foram conseguidas em São Paulo, o que levantou outros questionamentos: Contra exatamente o quê a Justiça está protegendo o shopping? É possível vetar a entrada das pessoas por roupa, faixa etária, aparência? É possível determinar exatamente o número de pessoas que caracterizam um rolezinho? Eu sei que há uma grande discussão sobre a propriedade privada dos shoppings versus o direito à circulação, mas não é esse o ponto. Os juízes que embarcaram no medo dos shoppings parecem ver o problema de longe, distante, como se legislasse do Brasil para um fictício país distante que fala português com sotaque paulistano.

Quando tudo isso chega ao lado de cá da ponte, é filtrado pelas lentes do debate político histérico que tomou conta do país. Tudo parece virar apartheid ou comunismo, direito à livre circulação ou defesa da propriedade privada. Todo mundo tem certezas com base em quase nada. Os blogueiros de direita denunciam a conspiração dos funkeiros contra a civilização ocidental. Os blogueiros de esquerda veem apartheid das elites nos shoppings da periferia. Vira um festival livre de loucura, um campeonato nacional de associação livre, em que cada lado atribui um valor a esse encontro de lazer de acordo com a conjuntura política. O fenômeno deixa de ser analisado em si, e passa a ser analisado para servir de arma numa briga muito maior. Esses jovens de Itaquera, do Campo Limpo, de Interlagos, são desumanizados e se tornam aríetes de uma luta da qual eles não têm a menor ideia que estão participando. E as decisões da Justiça, difíceis de entender, só mostram o tamanho do desconhecimento.

Não há razão para idolatrar ou demonizar os rolezinhos. Talvez haja furtos, talvez haja arrastões, e não há nada que a polícia possa fazer senão impedir que as pessoas pobres que frequentem esses shoppings sejam roubadas ou furtadas. Mas também não faz nenhum sentido impedir que essas pessoas entrem em shoppings pelo simples fato de usarem um boné de aba reta ou um tênis cheio de cores. Os rolezinhos são o que são. E merecem estudos, debates e reflexões melhores do que vem recebendo até agora.

Porque se tem algo que os rolezinhos legam, com certeza, nesse mar de dúvidas, hipóteses e exageros, é que o nível do debate da ponte pra cá anda bem baixo. E, quando se mete a falar de periferia, esse gigante desconhecido, ganha contornos constrangedores. A periferia é muito mais complicada do que nossos veredictos em 140 caracteres. Como já diria Bob Dylan, há quase 50 anos, em Ballad of a Thin Man (uma música que provavelmente incomodou tanto quanto funk ostentação em seu tempo):

“Você esteve com os professores
E todos eles gostaram de sua fachada
Com grandes advogados você tem
Discutido leprosos e ladrões
Você passou por todos
Todos os livros de F. Scott Fitzgerald
Você tem um conhecimento literário amplo
Já se sabe
Mas algo está acontecendo aqui
E você não sabe do que se trata
Sabe, Mr. Jones?”

Poucas pessoas, hoje, podem dizer que compreenderam as margens da cidade. Quem a entendeu com tino comercial fez dinheiro com ela muito anos antes de qualquer pessoa falar da classe C. Uma delas é Samuel Klein: criou as Casas Bahia e descobriu, quando todo mundo dizia que pobre era caloteiro, que assalariados e remediados pagam prestação em dia. Um Samuel Klein jornalista, acadêmico ou especialista faz muita falta nesse debate sobre os rolezinhos. Eles existem, mas ainda estão quietos. É hora de falar. É preciso mudar os termos do debate antes que os pobres sejam humilhados mais uma vez: perdendo a própria humanidade.

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Leandro Beguoci, do blog Oene