Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A hélice quebrada

Na noite de terça-feira (11/2), visitando a editoria de Ciência da Folha de S.Paulo, percebi que duas das oito manchetes estampadas no rol de notícias do dia tinham a ver com o mesmo assunto: o lançamento (oficialmente, em 6/2) de uma versão brasileira do livro A dupla hélice, do biólogo estadunidense James [Dewey] Watson (nascido em 1928). Uma foto da capa do livro podia ser vista logo ao lado, na coluna “Livraria da Folha”, acompanhada do preço do produto e de um botão vermelho onde se lia “Comprar”.

Hesitei um pouco (tenho acesso a um pequeno número de matérias por mês, pois não sou assinante da Folha ou do UOL), mas terminei lendo a matéria principal, intitulada “‘A Dupla Hélice’ descreve rivalidade e ambição na comunidade científica“. Foi um tanto decepcionante: o texto – seis minguados parágrafos – informa mais ou menos a mesma coisa que pode ser encontrada no material promocional divulgado pela editora (ver aqui).

Quase meio século de atraso

O chamado modelo em dupla hélice para a estrutura molecular do ácido desoxirribonucleico (ADN ou DNA, na sigla em inglês) apareceu pela primeira vez em um artigo publicado na revista científica Nature, em 1953 (WATSON & CRICK 1953). Os autores do artigo – James Watson e o físico inglês Francis [Harry Compton] Crick (1916-2004) – foram posteriormente laureados com um Prêmio Nobel (1962), juntamente com o físico inglês de origem neozelandesa Maurice [Hugh Frederick] Wilkins (1916-2004).

A versão original de A dupla hélice apareceu em 1968 – i.e., 15 anos após o artigo na Nature e seis anos após o Nobel. Foi um acontecimento e tanto. Além do texto bem escrito (sobretudo para os padrões de cientistas profissionais, muitos dos quais estão habituados a escrever como quem preenche um formulário), o livro trouxe à tona algo até então incomum: as recorrentes picuinhas acadêmicas (disputas, intrigas, golpes baixos etc.), descritas e comentadas na primeira pessoa por alguém que acabara de ser alçado ao “topo do mundo acadêmico”. Uma das credenciais do autor seria justamente esta: a franqueza, a ponto de ele próprio admitir que a sua parcela de contribuição na “descoberta do DNA” foi em boa medida um golpe de sorte. Não estivesse ele no momento (1951-1953) e no lugar (Cambridge, Inglaterra) certo, o seu nome provavelmente jamais seria associado ao famoso modelo em dupla hélice.

A publicação do livro não foi algo simples e fácil – a editora da Universidade de Harvard (EUA), por exemplo, aceitou o manuscrito, mas logo depois, em virtude de pressões, desistiu. Uma vez publicado, porém, o livro se transformou em um grande sucesso editorial em todo o mundo. Uma primeira versão em português foi publicada pela editora portuguesa Gradiva, em 1987 (ver aqui). A edição brasileira de agora está, portanto, um tanto quanto atrasada – algo como 46 anos em relação ao original e 27 em relação à edição portuguesa. (Não sei bem por que nenhuma editora brasileira publicou antes essa obra, mas seguramente não foi por falta de leitores.) Mas, como diz o ditado, antes tarde do que nunca…

O problema aqui é outro: ao que parece, a tradução para o português que a Zahar acaba de lançar não corresponde muito bem ao que se lê na obra original.

A julgar pela amostra…

As distorções, a rigor, começam pela capa. O título completo da versão brasileira é A dupla hélice – Como descobri a estrutura do DNA. Mesmo sabendo que a arrogância é uma das “virtudes” do mundo contemporâneo, acho que esse título não soa nada bem. Penso que o mais apropriado seria simplesmente repetir o original, a saber: A dupla hélice – Um relato pessoal da descoberta da estrutura do DNA. É bom ressaltar que o próprio autor deixa claro que o livro é justamente isso: um relato pessoal, parcial e comprometido (i.e., um ponto de vista que expressa julgamentos, opiniões e estereótipos).

Os problemas da recém-lançada edição brasileira não se limitam, porém, a um título exageradamente arrogante e, como um modo de testar a consistência do conteúdo, eu decidi comparar a “amostra grátis” do livro (incluindo Abertura, p. 27-29; Prólogo, p. 31-32; e quatro páginas do Capítulo 1, p. 33-36), encontrada no sítio da editora (ver aqui), com os trechos correspondentes da versão original (ver aqui).

Embora o número de páginas examinadas (9) corresponda a apenas uns 5% de todas as que foram traduzidas, a quantidade e a gravidade dos erros e mal-entendidos encontrados merecem registro, não cabendo rotular os resultados obtidos apenas e tão-somente como “acidentais” ou “desprezíveis”. No que segue, o leitor poderá conferir alguns casos ilustrativos.

… a tradução deixa muito a desejar

Primeiro exemplo. No prefácio original (Preface, p. xi-xii), lemos (grifos meus):

“As I hope this book will show, science seldom proceeds in the straightforward logical manner imagined by outsiders. Instead, its steps forward (and sometimes backward) are often very human events in which personalities and cultural traditions play major roles. […] In any event, this account represents the way I saw things then, in 1951-1953: the ideas, the people, and myself.”

Na versão brasileira (Abertura, p. 27), consta o seguinte:

“Como espero que o livro mostre, a ciência raramente caminha da maneira linear lógica imaginada por quem é de fora. Em vez disso, seus passos para a frente (e, às vezes, para trás) muitas vezes são constituídos por acontecimentos totalmente humanos, em que pessoas e tradições culturais desempenham papéis de destaque. […] De qualquer modo, essa narrativa representa o modo como eu via as coisas na época, em 1951-1953, as ideias, as pessoas e a mim mesmo.”

Feitos alguns ajustes e correções, penso que ficaria melhor assim:

“Como espero que este livro venha a mostrar, a ciência raramente caminha do modo lógico e direto idealizado por quem está de fora. Em vez disso, seus passos para frente (e às vezes para trás) são muitas vezes eventos genuinamente humanos, em que as individualidades e as tradições culturais desempenham papéis importantes. […] Seja como for, este relato representa o modo como eu via as coisas naquela época (1951-1953): as idéias, as pessoas e a mim mesmo.”

Segundo exemplo. Algumas páginas adiante (p. 3), lemos:

“Alfred Tissieres, then a Fellow at King’s, had said he would get me to the top of Rhotorn, […].”

Na versão brasileira (Prólogo, p. 31), consta:

“Alfred Tissieres, na época bolsista do King’s, disse que poderia me levar até o topo do Rothorn, […].”

Feitos alguns ajustes e correções, teríamos:

“Alfred [Tissières], então um membro do King’s, disse que me levaria ao cume do Rothorn, […]”

Terceiro. O terceiro exemplo envolve a famosa frase de abertura do capítulo 1. No original (p. 7), lemos:

“I have never seen Francis Crick in a modest mood. Perhaps in other company he is that way, but I have never had reason so to judge him.”

Na versão brasileira (p. 33), consta:

“Nunca vi Francis Crick com um humor contido. Talvez na companhia de outra pessoa ele fosse assim, mas nunca tive razão para julgá-lo.”

Feitos alguns ajustes e correções, chegamos a:

“Nunca vi Francis Crick em uma postura modesta. Com outra pessoa ele talvez agisse desse modo, mas eu nunca tive motivos para julgá-lo assim.”

A cristalografia foi descoberta ou inventada?

Quarto e quinto exemplos. Em um mesmo parágrafo do original (p. 8), lemos:

“For almost forty years Bragg, a Nobel Prize winner and one of the founders of crystallography, had been watching X-ray diffraction methods solve structures of ever-increasing difficulty. […] Thus in the immediate postwar years he was especially keen about the possibility of solving the structures of proteins, the most complicated of all molecules.”

Na versão brasileira (p. 33-34), consta:

“Por quase quarenta anos, Bragg, vencedor do Prêmio Nobel e um dos descobridores da cristalografia, observava que métodos de difração de raios X elucidavam estruturas de dificuldade crescente. […] Dessa forma, nos anos imediatamente posteriores ao pós-guerra, Francis estava vidrado na possibilidade de elucidar as estruturas das proteínas, as mais complicadas de todas as moléculas.”

Feitos alguns ajustes e correções, teríamos:

“Por quase quarenta anos, Bragg, ganhador do Prêmio Nobel e um dos fundadores da cristalografia, vinha observando os métodos de difração de raios X elucidarem estruturas cada vez mais difíceis. […] Assim, nos primeiros anos do pós-guerra, ele [o autor se refere a Bragg, não a Francis] estava especialmente atento à possibilidade de elucidar as estruturas de proteínas, as mais complicadas de todas as moléculas.”

Sexto exemplo. No original (p. 9), lemos:

“A day or so later he would often realize that his theory did not work and return to experiments, until boredom generated a new attackon theory.”

Na versão brasileira (p. 34), consta:

“Um dia depois, normalmente, percebia que a teoria não funcionava e voltava para seus experimentos, até que o tédio gerasse uma nova investida contra a teoria.”

Feitos alguns ajustes e correções, teríamos:

“Mais ou menos um dia depois ele muitas vezes percebia que a sua teoria não funcionava e voltava aos experimentos, até que o tédio gerasse uma nova investida na teoria.”

Sétimo exemplo, para encerrar. (O mal-entendido envolvendo a tradução da palavra “fellow” já foi mencionado antes.) Em um mesmo parágrafo do original (p. 10), lemos:

“Though he had dinning rights for one meal a week at Caius College, he was not yet a fellow of any college. […] Clearly he did not want to be burdened by the unnecessary sight of undergraduate tutees.”

Na versão brasileira (p. 36), consta:

“Apesar de ter direito a uma refeição por semana no Caius College, ele ainda não era bolsista de nenhuma faculdade. […] Claramente não queria ser sobrecarregado pela supervisão desnecessária de tutelados não graduados.”

Feitos alguns ajustes e correções, chegamos a:

“Embora tivesse o direito de jantar uma vez por semana no Caius College, ele ainda não era membro de nenhuma faculdade. […] Era claro que ele não queria ser incomodado pela visão desnecessária de tutelados de pós-graduação.”

Traduções instantâneas

Esta não é a primeira vez que eu tenho a oportunidade de comentar a respeito de erros e mal-entendidos envolvendo a tradução para o português de obras que foram originalmente publicadas em outro idioma – e.g., ver, neste Observatório, o artigo “Nem sempre é culpa da mídia“.

Temo que o problema não vá ser equacionado nem resolvido enquanto as editoras insistirem em priorizar aspectos absolutamente secundários (e.g., capa e projeto gráfico), deixando o trabalho que realmente importa (i.e., a qualidade do texto) em segundo plano. Além disso, pouco ou nada adianta contratar o melhor tradutor disponível, se o prazo que lhe é dado for algo miseravelmente exíguo. Como diz o ditado, a pressa é inimiga da perfeição – e “traduções instantâneas” são quase sempre traduções não apenas imperfeitas, mas terrivelmente desastrosas.

O que é particularmente preocupante desta vez é perceber que uma editora conceituada como a Zahar não está imune a esse tipo de barbeiragem (i.e., publicar um livro com problemas de tradução, aparentemente numerosos e mais ou menos graves). A se confirmar o estrago (eu ainda não tive acesso ao livro físico), sou de opinião que a editora deveria divulgar uma minuciosa e cuidadosa errata e, em seguida, refazer a edição. O que não se deve fazer é empurrar uma hélice quebrada para debaixo do tapete.

Referência citada

WATSON, J. D. & CRICK, F. H. C. 1953. “A structure for deoxyribose nucleic acid”. Nature 171: 737-8.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor e autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)