Santiago Ilídio Andrade era nossos olhos e nossos ouvidos. Sem o trabalho dele, e de tantos colegas seus, cinegrafistas, jornalistas, funcionários de apoio, não teríamos notícias – ou só teríamos versões das partes interessadas. O assassino de Santiago e seus cúmplices diretos, que compraram, transportaram e acenderam o rojão de vara, provavelmente não miravam o cinegrafista, mas os policiais. Contudo, sabemos pela palavra deles que devotam um mesmo ódio a jornalistas e policiais. Faz sentido: eles odeiam a democracia – e, deploravelmente, não estão sozinhos.
Santiago não é uma vítima “acidental”. Santiago é um cadáver circunstancial, mas anunciado desde as jornadas de junho. O que faziam, na periferia e na fímbria das manifestações, os vândalos, os depredadores, os mascarados? Eles abriam picadas no rumo de seu El Dorado: o sangue de alguém, qualquer um, policial, transeunte, jornalista, cinegrafista ou manifestante. “Abaixo a ditadura 2.0”, leio numa página de Facebook consagrada à propagação do vandalismo. Os covardes, rosto escondido, precisavam provar a tese que justificaria sua própria existência: a democracia é uma farsa, a máscara da ditadura.
Santiago teve seu crânio destroçado por um foguete ideológico. Os autores da tese não acenderam o rojão de vara, não o transportaram e não o compraram. Esses intelectuais de araque, que são as fontes de inspiração do assassinato, talvez nunca tenham se misturado a uma manifestação de rua. Eles circulam em esferas sanitizadas: universidades, ONGs, movimentos sociais, partidos políticos. Mas, enquanto a investigação policial desvenda os nomes de quem pode ser indiciado, cabe a nós decifrar as ideias que os mobilizam. O perigo está nelas: os pavios imateriais de foguetes ainda não lançados.
Santiago morreu porque, atrás dos assassinos, renasce uma velha teoria sobre a política e a democracia. As páginas eletrônicas dos black blocs definem a nossa democracia como um “Estado policial”. Um professor da FGV-SP, Rafael Alcadipani da Silveira, atribuiu a “estratégia da violência” aos “jovens das periferias”, “vítimas da violência cotidiana por parte do Estado”. A expressão “contraviolência” foi difundida por intelectuais radicais nas décadas de 1970 e 1980 para celebrar o método de “ação direta” empregado por organizações extremistas que, cindidas, dariam origem a agrupamentos terroristas como o Baader-Meinhof, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, na Itália. As fórmulas incendiárias daqueles intelectuais ressurgem entre nós, como frutos podres de uma crise política e moral.
Face do mal
Santiago está morto porque a fronteira entre a violência “simbólica” e a violência “real” só existe no pensamento depravado dos cultores da violência “simbólica”. Bruno Torturra, o chefão do Mídia Ninja, um “instituto” informal financiado com recursos públicos, definiu o Black Bloc como “uma estética” e fez a defesa da violência nas manifestações, “desde que dirigida aos bancos”. O filósofo-ativista Pablo Ortellado, um herdeiro ideológico dos arautos europeus da “contraviolência”, declarou sua paixão pela “ação simbólica” de depredação de uma agência bancária, um simulacro da “ruína do capitalismo” situado “na interface da política com a arte”. Mas por que eles nutrem uma obsessão exclusivista pelos bancos? O linchamento de um policial não poderia ser descrito como símbolo da “ruína da repressão de Estado”? O assassinato de um jornalista não anunciaria o almejado “controle social da mídia”?
Santiago morreu de excesso de violência “simbólica”, mas não apenas disso. “Não vamos parar, o poder é nosso!”, escreveu o Black Bloc RJ na hora da notícia do falecimento do cinegrafista. A causa mortis tem ramificações complexas, que deitam raízes na condescendência nacional com a violência “justa”. A imprensa apressou-se, com razão e cumprindo seu dever, a denunciar as truculências policiais contra manifestantes pacíficos nos primeiros protestos de junho – mas custou a usar a palavra “vândalos” para qualificar os idiotas mascarados que se movem em busca de sangue. Um certo número de sindicalistas, alguns deles ligados ao PSOL, firmaram um pacto de aliança com os Black Blocs na greve dos professores do Rio de Janeiro. Numa nota asquerosa, mas típica, o Sindicato dos Jornalistas do Rio omitiu a origem do projétil que vitimou Santiago. Fora algumas honrosas exceções, não se ouviu uma palavra de condenação ao vandalismo sair da boca dos célebres “intelectuais de esquerda”.
Santiago é uma vítima, entre tantas outras não ligadas a manifestações, da inclinação do governo a produzir rimas entre “pobreza” e “violência”. Três meses atrás, o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, anunciou que buscava “interlocutores” entre os black blocs para “compreender este fenômeno social” e entender “até que ponto a cultura da violência vivida na periferia já emigrou para esse tipo de ação”. O poderoso ministro, representação onipresente de Lula no governo Dilma, fala uma linguagem paralela à dos intelectuais engajados na justificação dos black blocs. “Cultura da violência”? “Fenômeno social”? Não, de jeito nenhum: o rojão que matou Santiago é um projétil político dirigido contra o alvo da democracia.
Santiago morreu porque damos ouvidos a Gilberto Carvalho, não a Reynaldo Simões Rossi, o coronel da PM espancado por uma chusma de covardes durante uma manifestação em São Paulo. Rossi disse que seu dever era respeitar os manifestantes e isolar a “minoria de criminosos e vândalos” que “se apropriam de manifestações legítimas”. Há algo de profundamente errado com um país incapaz de enxergar a face do mal, quando ela se esconde atrás da máscara de uma ideologia. A memória de Santiago exige que, finalmente, separemos os manifestantes dos vândalos – tanto nas palavras quanto nas ações.
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Demétrio Magnoli é colunista do Globo