Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cinegrafista morto e certas fatalidades do jornalismo

Em 2006 trabalhava como repórter de um jornal policialesco e participei da cobertura de diversas operações policiais em favelas. Era um dever de ofício, pois uma das matérias-primas da composição editorial daquele veículo calcava-se em estandardizar ações dessa natureza. Inúmeras subidas acabaram me levando às comunidades Chapéu Mangueira e Babilônia quando do famoso roubo de material cênico (réplicas de armas como pistolas e fuzis, incluindo munição) a ser utilizado nas filmagens do primeiro Tropa de Elite. Traficantes acreditaram na veracidade daquelas peças como um elemento de vantagem para a tomada de algum território dominado por facção rival e ameaçaram de morte toda a equipe. A polícia, naturalmente, foi ativada e a imprensa chegou a reboque.

Naquela época, o jornal atravessava um incômodo processo de precarização das rotinas de trabalho. A boa e velha combinação de baixos salários, longas jornadas, com direito a acúmulo de matérias por dia, somava-se ao déficit de viaturas que poderiam, em não raras exceções, levar três equipes diferentes ao mesmo tempo para direções igualmente aleatórias. Porém, o que realmente passou a me preocupar foi a completa ausência de investimentos em equipamentos de segurança para cobrir zonas de conflito. Ao chegar ao Chapéu Mangueira/Babilônia, no trecho onde hoje localiza-se o aprazível Bar do Davi, nas imediações de uma quadra de futebol que também abriga uma unidade da Faetec, percebi de pronto que éramos a única equipe jornalística que não dispunha de nenhum tipo de proteção. Com seus coletes à prova de bala, o restante dos coleguinhas das empresas concorrentes parecia preparado para noticiar a invasão do Iraque.

De repente, um disparo. Medo e apreensão gerais. Descobre-se que o tiro partiu de um dos policiais do Bope (com munição de verdade, vale o registro) que nos acompanhavam, pois ele suspeitou de um movimento que poderia ser configurado como ameaça. Tudo não passou disso: ameaça. A operação procedeu normalmente, policiais adentraram a comunidade, mas nada foi achado. O único disparo dado foi para se debelar uma dúvida. Alguns repórteres demonstram expressões de muxoxo e tentam extrair daquele anticlímax algo digno de nota. Uma entrevista com a delegada Monique Vidal aqui e pronto; todos de volta para as redações com tédio no olhar.

Neutralidade política

Naquele dia não houve um intenso tiroteio, ninguém se feriu e ninguém morreu. Se morto estivesse em função dessa vulnerabilidade (a ausência de colete), talvez o ocorrido merecesse uma nota de repúdio do Sindicato dos Jornalistas. Talvez algumas emissoras de TV procurassem meus pais para relatarem a “perda do filho querido”, talvez os jornais gastassem um pouquinho de tinta para emitir uma notinha ou um “box” com a minha breve biografia como complemento à matéria. Talvez alguém do segundo escalão da Secretaria de Segurança Pública lamentasse a minha morte. Talvez as imagens do meu enterro deflagrassem um novo, porém tímido, debate sobre os riscos da profissão de jornalista. Talvez, talvez…

Essa soma de “talvezes” se faz relativizada se nos debruçarmos no contexto histórico da época. Em 2006, não havia uma organização popular, quer seja ela contestatória ou reivindicatória, que precisasse urgentemente de uma categorização política em sua composição ou uma rápida compreensão sobre suas pautas. Não havia um conjunto de ações, reações e fatores que iniciasse uma ampla discussão sobre os rumos sociais e econômicos de uma cidade às vésperas de receber dois megaeventos esportivos globais. Não havia uma diatribe contra milicianos, a violência em comunidades com UPP, empresários de ônibus inescrupulosos e firmas de advocacia que lidam diretamente com os interesses pessoais do governador.

O cenário era de aparente neutralidade em quase todos os aspectos políticos. Sérgio Cabral Filho ainda era o franco favorito nas pesquisas para o pleito que o elegeria ao governo do estado e as Organizações Globo, apesar das tradicionais críticas em relação ao maniqueísmo de todos os seus tentáculos midiáticos, ainda era a Bastilha carioca. Resumindo: o clamor (se é que existiria) de justiça pela minha morte se transformaria em mais um dado para a estatística de óbitos produzidos pela violência. A dor da minha família e a inquietação de uma categoria profissional não seriam utilizados como um trunfo para interpretações desconectadas de todas as verdadeiras origens que levaram a esse atual estado de coisas.

O vendedor de balas

Mas estamos em fevereiro de 2014. Um cinegrafista da Rede Bandeirantes foi morto por, como escreve repetidas vezes a imprensa desde junho do ano passado, cobrir mais uma manifestação “que começa pacífica e termina em vandalismo” e automaticamente foi alçado ao posto de mártir. Nenhum ser humano deve morrer em qualquer tipo de demonstração pública de insatisfação contra o governo vigente. Mas é impossível não reconhecer nas tintas que compõem o mosaico dessa tragédia, a retórica do oportunismo. A dosagem de luto, o espanto pela violência não recaiu em igual proporção, por exemplo, na morte do vendedor e jornaleiro Tasman Amaral Accioly, de 72 anos. Ele foi atropelado na mesma quinta-feira da semana passada que vitimou o repórter cinematográfico Santiago Andrade. Mas em circunstâncias igualmente controversas.

Eu também havia participado da manifestação contra o aumento das passagens de ônibus e quando a multidão já havia sido dispersada das imediações da Central do Brasil, a Polícia Militar intensificou as ações de repressão lançando suas bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo. Vale ressaltar que a PM não se satisfaz em debandar grupos organizados para as órbitas da zona de conflito. Ela faz perseguições sistemáticas que podem perdurar 2,3 quilômetros para além do cenário a ser ordenado quando, então, é percebida a necessidade de nova intervenção. Uma dessas perseguições adentrou a Av. Presidente Vargas e, na altura da esquina com a Rua da Conceição, (ao lado do prédio do Detran-RJ) me deparei com o idoso debaixo de um ônibus com uma das pernas destruídas. Um grupo se juntou ao seu corpo para, imagino, buscar alguma forma de ajudá-lo. Imediatamente (assim como fizeram algumas pessoas) liguei para minha mulher afim que solicitasse a vinda de uma ambulância do Samu ao local, já que, infelizmente a bateria do meu celular encontrava-se no limite de seu uso e, como bem sabe quem participa ativamente destes protestos, todo o sistema de telecomunicações é derrubado para evitar a transmissão de dados em tempo real sobre os acontecimentos.

Os relatos forneciam a versão de que, ao avistar um outro grupo de pessoas em desabalada carreira e em direção ao coletivo, talvez fugindo da PM, talvez propagando a desordem, já que ações de depredação também foram registradas, o idoso teria tomado a precipitada decisão de, num acesso de pânico, ter saltado do ônibus ainda em movimento e, com isso, selando o seu próprio destino. Entretanto, qualquer tentativa para se estabelecer contato com alguma instituição de saúde precisou ser interrompida, pois um grupamento de motos do Batalhão de Choque, acompanhado de novos barulhos produzidos por bombas, se aproximou em grande velocidade de onde estávamos e o convite à fuga torna-se outra vez inevitável. Ninguém que aspira gás lacrimogêneo quer reproduzir aquela sensação de sufocamento de novo. Ao correr, tenho a compaixão de olhar para trás. Tempo suficiente para perceber que os PM’s que ali chegaram, tiveram a precisa avaliação da gravidade do fato.

Acidente X atentado

O cinegrafista Santiago Andrade agonizou por quatro dias e quando anunciada a sua morte cerebral, em 10 de fevereiro, engendrou-se uma das mais simbólicas orquestrações de repúdio da imprensa brasileira nos últimos 10 anos. Em igual dosagem, talvez só a perpetrada como resultado da morte brutal do jornalista Tim Lopes. Mas a hierarquização de importância de duas vítimas como critério de noticiabilidade revela um abismo (incomum) nos métodos de apuração. Para estranhamento inicial, a morte de Tasman, o vendedor de balas, só foi “descoberta” cinco dias depois pelo jornal Extra. Não, por acaso, período compreendido entre o disparo do rojão e a confirmação da morte do cinegrafista. Isso numa época em que a combinação de smartphones com câmeras digitais e a velocidade das redes sociais consegue multiplicar e potencializar um fato em minutos.

Mais comprometedor ainda é o jornal reconhecer declaratoriamente no texto da matéria, numa interpretação que parece tentar justificar o seu atraso, que o despertar para a percepção do outro falecimento resultou-se única e exclusivamente através de uma inevitável gritaria pelo Facebook, cujo clamor virtual intencionou denunciar a ausência de envolvimento da grande mídia para a publicização do ocorrido. O ápice para a quebra desse silêncio foi a disseminação de algumas fotos de Tasman desacordado e embaixo do ônibus. Daí, então, partiu-se para a apuração. Mas por quê a demora?

A morte de Santiago era “a brecha que o sistema queria” como entoa Mano Brown no rap “Diário de um Detento” dos Racionais MC’s. Independente de todo o processo que gerou a atitude tresloucada de se atirar um rojão a esmo, com vistas a atingir uma pessoa ou grupo e que, por um acaso, vitimou o funcionário da Band, são evidentes as maquinações para se instrumentalizar a fatalidade como a “prova cabal contra a arbitrariedade de alguns elementos de comportamento fascista”. Insisto na tese da fatalidade (ou homicídio culposo como queiram), pois um rojão, por mais que seja um instrumento mortal, se usado de forma inadequada, não tem a precisão cirúrgica do dano se comparado a uma bala de pistola ou fuzil. O rojão estava estacionado no chão, ganhou empuxo ao ser aceso, serpenteando-se para o alto e, por fim, em sua trajetória irregular, acertou em cheio a cabeça do cinegrafista. Mas se analisarmos a conjuntura desse procedimento, veremos que isso não configura Santiago como um alvo em potencial. Uma vítima fatal, sim, já que o artefato poderia ser ricocheteado para qualquer lugar, podendo atingir outras pessoas, como já foi defendido aqui. Mas essa ótica descarta a hipótese de um atentado planejado friamente.

O editorial da Globo

A reportagem do RJTV, 24 horas após o encaminhamento de Santiago ao Hospital Souza Aguiar, foi didática ao sustentar essa teoria, pois como todos devem se lembrar: a intenção da Rede Globo era inocentar a PM e criminalizar os jovens aloprados. Ao fornecer detalhes técnicos de que o artefato era um explosivo caseiro e não uma arma militar, a Globo, ironicamente, acabou por enterrar qualquer tipo de certeza e criou-se um dissenso que atravessa desde botequins até as redes sociais: acidente ou assassinato premeditado? O problema é que qualquer norma legal sacralizada nas melhores escolas de Direito do planeta, objetivando um fator que atenuasse o crime, soaria como um deboche a todos os revanchistas de plantão, pois no calor da emoção seria inconveniente proclamar que a dupla “não tinha intenção de matar”; apesar da tipificação de crime por homicídio culposo ter vindo em boa hora para relativizar litígios como os gerado por Thor Batista, filho do ex-bilionário Eike Batista que, com sua Mercedes, matou um ciclista, em alta velocidade no início do ano passado.

Mas como a morte foi corporativizada nesse caso? Simples. Vitimizando quem poderia promover uma grande reviravolta contextual caso a oportunidade lhe batesse a porta; nesse caso as Organizações Globo. Afinal de contas, elas foram o alvo preferencial para se discutir um amplo projeto de democratização da mídia, em função de edições tendenciosas em seus telejornais que se concentravam em espetacularizar as ações de “vandalismo e baderna”, pondo em segundo plano toda uma agenda programática de reivindicações dos movimentos sociais ali incluídas, sem ao menos discuti-la com a devida profundidade. Especialistas convidados, como a antropóloga Jaqueline Muniz, tentaram nortear ideias para além do cenário preestabelecido, mas foi uma pregação para os convertidos.

Entretanto, sob os incessantes gritos de “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura e ainda apoia” e diante de uma série de negativas em relação ao seu silêncio que perdurou por mais de um mês, desde as manifestações de junho de 2013, consolidou-se o inevitável (e até então inacreditável): o editorial mea culpa sobre as escolhas, agora reconhecidamente equivocadas pela própria empresa, motivadas por se “acreditar em uma forma de governo” que para seus timoneiros era o mais adequado para legitimar a ordem e o controle social. Neste caso o golpe militar de 1964…

Isso quase 50 anos depois e encomendado de forma muito providencial.

Os que estão chocados

Mas se os black blocs eram uma nova facção criminosa em curso, se eles orquestravam ações de vandalismo e depredações, além de outras supostas modalidades criminosas, como tão enfaticamente a Globo sempre narrou em seus veículos de comunicação, por que nunca houve nenhum ato público contra as suas presenças durante todas as manifestações no segundo semestre de 2013? Se o inimigo estava ao lado, por que o grupo não era hostilizado, vaiado ou mesmo isolado do resto da multidão? Como 100 mil pessoas poderiam estar defendo uma corja de marginais? Talvez porque o enquadramento fornecido nas inúmeras manifestações anteriores tenha sido sistematizado para fornecer uma visão simplificadora e narcotizante do “novo PCC”, como disseram alguns. Também convém resgatar da memória que, historicamente, os grandes conglomerados midiáticos extrapolam o uso da estética do medo na defesa de suas posições ideológicas. E a grande conclusão que se tentou entabular na “opinião pública” era de que manifestações democráticas são lugares potencialmente perigosos demais para se frequentar, em função de uma minoria preocupada apenas no confronto e na baderna.

Mas como convém a todo pensamento conservador, é mais fácil escandalizar-se com o resultado final perturbador de um determinado cenário do que prevenir homeopaticamente, e com contrapartidas socioeconômicas, métodos que possam coibir a possibilidade de novas irrupções sociais. Mas para os governos isso é caro, demorado e gera votos.

O mais interessante disso tudo é que o empregador de Santiago, o Grupo Bandeirantes de Comunicação, ganhou a antipatia de, surpreendentemente, pequena parte da categoria profissional. O episódio, ao invés de promover uma unificação de colegas de classe e, quem sabe, uma reflexão sobre métodos de cobertura jornalística em momentos de tensão social, serviu para deflagrar um racha ideológico entre os jornalistas do Rio de Janeiro, especialmente pelo Facebook, onde os grupos se dividem entre aqueles que estão chocados com um “ato de terrorismo proveniente da tática black bloc” e aqueles que são chamados de comuno-fascistas, pois se preocuparam mais em externalizar a responsabilização (assim como o Ministério Público) criminal e trabalhista da Band em não investir em equipamentos adequados de segurança na cobertura de zonas de conflito há mais de seis meses. Que tinham um início, meio e fim, este principalmente previsível a todo bom profissional de imprensa.

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Fabio Leon Moreira é jornalista, gestor público assistente e mestrando em Comunicação