Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dever de um jornal

Se há algo a que os jornalistas estão acostumados é a contrariedade que a publicação de fatos negativos sobre pessoas, partidos, artistas, políticos, empresários gera naqueles que os admiram, respeitam e os têm acima do bem e do mal. O fenômeno é diário, e recebido pelo jornal como algo natural.

Essa contrariedade se expressa de diversas formas: cartas, e-mails, telefonemas e comentários em redes sociais. E até mesmo em colunas assinadas publicadas por colaboradores: como o jornalismo deve buscar a expressão livre de opiniões para que o leitor tenha diante de si uma pluralidade de ideias, é normal que colunistas divirjam do próprio jornal em que escrevem.

O episódio em torno do deputado Marcelo Freixo é um exemplo. Muitos criticaram a postura da imprensa em geral, e do Globo em particular, de publicar fatos que o tocavam diretamente.

No dia em que foi preso Fábio Raposo, réu confesso de participar diretamente da ação que resultou na morte do cinegrafista Santiago Andrade, Marcelo Mattoso, o estagiário do advogado que defendia o detido, disse duas coisas: a ativista Elisa Sanzi Quadros telefonara para ele e oferecera ajuda jurídica; e que, ao passar o telefone para o próprio advogado, Jonas Tadeu Nunes, este ouvira dela que o homem que atirou o rojão contra o jornalista “era ligado ao deputado Marcelo Freixo, do PSOL” e que o deputado estaria à disposição de Fábio. Ao telefone, a ativista avisava que estava indo à delegacia junto com outros ativistas para protestar contra a prisão. Tudo isso foi registrado, oficialmente, num termo de declaração prestado pelo estagiário na delegacia.

Logo em seguida, de fato a ativista e alguns colegas foram à delegacia. A primeira parte do termo de declaração, prestado antes de Elisa aparecer na repartição policial, estava confirmada. Um dos ativistas, Yan Carrazoni de Matos, chegou a ser agredido por um dos jornalistas ao dizer a ele e seus colegas que estavam de plantão na delegacia: “Tomara que vocês sejam os próximos” (os próximos a levar um rojão na cabeça). O que fez a imprensa e O Globo em particular?

Ligou para o deputado e relatou o ocorrido. O deputado primeiro disse que não sabia de nada e que só se manifestaria depois de ler o termo de declaração. De posse dele, decidiu gravar uma entrevista para a TV Globo, a primeira a procurá-lo. Na gravação, o deputado decidiu admitir que recebera um telefonema da ativista naquela manhã, solicitando assistência jurídica porque temia que o ativista preso fosse torturado. No telefonema, segundo seu relato, negou assistência jurídica, porque para isso existe a defensoria pública, mas concordou em agir para que torturas não ocorressem.

Por fim, negou ter dito à ativista que o atirador de rojão fosse ligado a ele. E prometeu processar a ativista e o advogado se insistissem nessa afirmação. Mais tarde, revelou que o advogado Jonas Nunes tinha sido o defensor de Natalino Guimarães, um dos líderes das milícias cujos crimes foram denunciados por ele quando presidia a CPI sobre o tema. Insinuou, assim, que o relato do advogado era enviesado.

Mais luz

A ativista, por sua vez, confirmou aos jornalistas que oferecera assistência jurídica e que telefonara para o deputado para pedir ajuda, mas negou ter dito que o atirador do rojão fosse ligado a Freixo. O delegado que cuidava do caso deu entrevista afirmando ter ouvido o telefonema e, por esse motivo, pedido ao estagiário para documentá-lo no termo de declaração.

A imprensa agiu corretamente. De posse de um documento oficial com uma narrativa grave como essa, num momento grave como aquele, ouviu todos: o advogado, a ativista, o deputado e o delegado. Parte do que a ativista disse ao telefone se confirmou: ela de fato compareceu à delegacia para protestar (e um de seus amigos ameaçou os jornalistas) e ela própria admitiu ter telefonado ao estagiário oferecendo ajuda jurídica e reconheceu ter telefonado ao deputado naquela manhã em busca de proteção ao preso contra maus tratos. Depois de dizer que não sabia de nada num primeiro instante, o deputado admitiu ter recebido um telefonema da ativista solicitando ajuda, mas negou envolvimento com o homem que atirara o rojão (desconhecido naquele momento).

O que faz um jornal diante disso? Omite os fatos na presunção de que o deputado Marcelo Freixo é um homem acima do bem e do mal? Mas esses homens, infelizmente, não existem. E, se existissem, nem eles poderiam ganhar da imprensa essa imunidade. O dever da imprensa é jogar luz sobre os fatos, não importando se atingem fulanos ou sicranos.

Confirmado que o telefonema existiu, e parte do seu conteúdo, não cabia ao jornal julgar se o trecho onde não havia coincidência de relatos era ou não verdadeiro (se o homem do rojão era ou não ligado a Freixo). O certo, ali, a obrigação da imprensa, era revelar a discordância e dar espaço igual para que todos a manifestassem. Inclusive destacando a informação de que o advogado Jonas Nunes fora o defensor de um miliciano. Isso foi feito, sem dúvida alguma.

O jornal não disse em momento algum que o deputado Marcelo Freixo era ligado ao homem do rojão, nem de forma alguma induziu seus leitores a acreditarem nessa versão. Seria absurdo e leviano, porque não há prova alguma sobre isso. Mas, certamente, o jornal foi leal com os leitores, publicando, com o destaque merecido, uma notícia, dando amplos espaços para que todos se manifestassem, o deputado principalmente. Agindo assim, foi respeitoso com a família do cinegrafista, interessada em tudo que lhe possa fazer justiça.

O que resta agora? Jogar mais luz no episódio. Acompanhar as investigações policiais, fazer investigações jornalísticas próprias para que, ao fim, a verdade apareça. Seja ela qual for. Jornalistas não são adivinhos: a verdade só aparece quando se expõem os fatos sem preconceitos.