Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O oportunismo fúnebre da mídia

Os protestos populares que se alastraram a partir de junho de 2013 e, desde então, tornaram-se eventos recorrentes na vida pública do país, acabaram por reformular por um breve período a posição estratégica da mídia: acostumada a pautar a agenda nacional e o próprio poder, ela viu-se apanhada de surpresa ante um fenômeno que sequer cogitara, tinha enormes dificuldades para interpretar e que se desenrolava à sua revelia.

Assim, deflagradas a partir de protestos contra o aumento da passagem de ônibus na cidade de São Paulo, mas logo alastradas em um rastilho que não distinguiu metrópoles e cidades médias ou pequenas, as manifestações, com seu caráter multitudinário, aleatório e polissêmico, sua ostensiva ausência de uma liderança central ou de uma pauta objetiva e hierarquizada de reivindicações, desnortearam a mídia corporativa e dificultaram sobremaneira suas tentativas de diagnosticar o fenômeno e reduzi-lo a um sistema que o assimilasse, explicasse e, se possível, neutralizasse.

Mudança de postura

De modo geral, a cobertura das manifestações nos grandes veículos oscilou de uma postura inicial frontalmente condenatória – vocalizada por porta-vozes como Carlos Alberto Sardenberg e Arnaldo Jabor, que logo mudariam de “opinião” – para uma posição que talvez possa ser descrita nos termos algo paradoxais de uma “simpatia receosa”, na qual os malsucedidos esforços de cooptação e de instrumentalização dos protestos eram insuficientes para disfarçar o temor que estes suscitavam.

Observa-se, neste aspecto, um ponto de coincidência entre o grosso da mídia corporativa e o petismo no poder – entidades tantas vezes tidas como antagônicas –, com a imprevisibilidade do rumo das manifestações reduzindo, ainda que transitoriamente, o poder de intervenção da mídia no jogo politico e compondo, para muitos governistas, um dos poucos empecilhos para uma reeleição presidencial que consideram favas contadas.

Experts a granel

Desde a irrupção junina, a mídia não deixou de ouvir uma pletora de alegados especialistas dispostos a explicar o fenômeno dos protestos, a perscrutar o que teria levado aquele povo – cuja passividade entre cordial e bovina fora tantas vezes apontada – a tomar as ruas em ruidosa reivindicação. A versão que talvez tenha prevalecido alega, em linhas gerais, que embora o petismo tenha efetivamente promovido a ascensão de dezenas de milhões a um padrão de consumo de classe média, não foi capaz de promover o correspondente acesso a serviços públicos e direitos sociais, tais como mobilidade urbana e lazer. Não é este o espaço para dissertar sobre as restrições passíveis de se fazer a tal interpretação, a qual, de uma forma ou de outra, faz das manifestações um corolário positivo do petismo, negligenciando o quanto elas se constituíram em uma reação explicitamente negativista dos efeitos do modelo de desenvolvimento econômico adotado no país na última década.

No âmbito deste artigo, mais importante é constatar que essas consultas midiáticas ao oráculo dos experts jamais correspondeu, no entanto, a um autêntico ímpeto investigativo, a uma disposição efetiva de se afastar dos gabinetes refrigerados dos mandarinse ouvir, em sua diversidade e nas ruas, as forças sociais em ebulição. As faces das novas subjetividades políticas que irrompem com os protestos permanecem, assim, uma esfinge. Talvez isso possa ser parcialmente creditado ao estado agônico da reportagem enquanto modalidade jornalística (custosa e demorada), mas não se deve descartar a hipótese de que motivações classistas forneçam ainda melhor explicação para tal omissão jornalística.

Oportunismo

Seja como for, a morte do cinegrafista Santiago Andrade mostrou-se o momento propício para a mídia corporativa, Rede Globo à frente, deslanchar uma operação de retomada da capacidade de ditar a agenda política do país, lançar uma sombra de dúvidas sobre a legitimidade dos protestos populares e, de quebra, jogar pesado no âmbito paroquial, investindo contra adversários em seu feudo fluminense – primeiro, contra Marcelo Freixo (PSOL-RJ); depois, ante a inconsistência das acusações e a forte reação contrária, contra o combalido Anthony Garotinho (PR-RJ).

Não vou me alongar aqui a respeito da necessária solidariedade ao cinegrafista morto. A dignidade do comportamento da viúva de Santiago Andrade, contrastada com o oportunismo e o corporativismo exacerbado de tantos órgãos, profissionais e analistas de mídia, fala por si, tanto como exemplo quanto como denúncia. Parece-me importante sublinhar, no entanto, o quanto o histerismo corporativista que se seguiu à tragédia favoreceu não só a difusão do complô político forjado pela mídia em torno do acontecimento, mas sua instrumentalização pelo conservadorismo populista, açulando o clima para um retrocesso que, este sim, ameaça a democracia: a criminalização de manifestações públicas via adoção de legislações draconianas na internet (Marco Civil) e nas ruas (lei “antiterrorismo”).

Perguntas sem resposta

Para tornar as coisas ainda piores, o modo como as corporações midiáticas empreenderam tal tentativa de retomar as rédeas do jogo político vem sendo caracterizado por flagrantes violações à ética jornalística no que tange a verossimilhança, plausibilidade e pluralidade; a “ouvir o outro lado”; ao exame dos interesses e motivações de cada um dos personagens da trama, a questionar, investigar e procurar confirmar (ou desmentir) a palavra das “autoridades” e dos réus, à busca por isenção e imparcialidade (mesmo que estas sejam inalcançáveis), entre outros itens.

Ao invés disso, o país assiste a uma tentativa da mídia de impor a sua versão da história, valendo-se de um cast mínimo de autoridades e delinquentes – incluindo um advogado que representa a dois réus, sendo que um acusa o outro via delação premiada –, em um caso em que a eficácia e rapidez da ação policial surpreendeu a muitos e em que há muitas lacunas e sérias dúvidas sem resposta. Não se pretende, neste espaço, analisar uma a uma as muitas incompatibilidades e as eventuais violações que vêm caracterizando a ação da mídia no caso. Outros analistas já o fizeram com muito mais propriedade e detalhe: Renato Rovai, editor da revista Fórum, publicou em seu blog uma imperdível lista de incompatibilidades e questões duvidosas sobre a cobertura do caso Santiago; neste Observatório, Luciano Martins Costa apontou “O jogo perigoso da especulação” que tem marcado a cobertura, o vale-tudo para jogar a culpa da violência sofrida por Santiago na conta dos Black Blocs (embora nenhum dos réus pertença ao movimento) e enumerou as mortes em manifestações que, sem estardalhaço midiático, antecederam a de Santiago.

Sob a sombra da história

Cabe apenas, por ora, ressaltar que o afã midiático de assumir o protagonismo político, somado ao seu descuido para com as normas do bom jornalismo na cobertura do caso Santiago e das manifestações e ao caráter acusatório e persecutório de suas manchetes desde então, demanda doses extras de desconfiança em relação ao noticiário que produz. Eventuais violações na conduta de indivíduos, associações, políticos e partidos devem ser rigorosamente apuradas e punidas pela Justiça, assegurada a presunção de inocência. A mídia, em nome desta e por definição, não pode prejulgar: tem por obrigação apurar, questionar, trazer a público documentos, evidências e depoimentos, mas buscando a pluralidade e assegurando a ampla defesa, ao invés de assumir um parti pris e fazer de tudo para prová-lo, à revelia do contraditório, como vem fazendo.

Num momento em que o Brasil está próximo de completar 50 anos do mais grave e duradouro atentado sofrido por sua democracia – o golpe militar de 1964 –, e às vésperas de uma nova eleição presidencial, o comportamento errático da mídia, seu desrespeito a normas básicas da deontologia jornalística e sua clara intenção de atribuir a culpa pela morte de Santiago a determinadas forças políticas, criminalizando os protestos, têm levado analistas a invocarem tanto a República do Galeão (o consórcio entre Aeronáutica e imprensa para derrubar Getúlio Vargas) quanto a Escola Base (em que a vida dos donos de uma escola infantil foi desgraçada após falsas acusações de pedofilia insistentemente difundidas). A gravidade de tais referências constitui um alerta: a insistência da mídia corporativa em agir como partido político, ao invés de limitar-se a cumprir seu papel social de agente de informação e de fornecedora de subsídios para a formação de subjetividades críticas, constitui, neste momento, uma ameaça ao futuro da democracia brasileira.

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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog