Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a notícia vem antes do fato

No dia 12 de fevereiro, diante da trágica morte do cinegrafista da Band, Santiago Andrade, O Globo publicou um editorial intitulado “Os inimigos da democracia” que, tal como o conhecido editorial que celebra o golpe civil-militar de 1964, merece ser lembrado como o marco de uma época – da imprensa e da história do Brasil. Do primeiro parágrafo, sensacionalista e raivoso, só merece destaque a última frase, que repete esse mantra vulgar de que, ao atingir um jornalista, o rojão atingiu a “própria democracia”. Mas é na sequência dessa conclusão que vem apresentada, sem máscaras – já que está na moda defender a cara limpa –, passo a passo, providência por providência, lei por lei, o projeto autoritário e interesseiro que o jornal-empresa defende todos os dias nas suas páginas, disfarçado de notícia.

O Globo espera que a morte de Santiago Andrade “sirva” “para uma intensa e profunda reflexão” sobre algumas distorções. E todas elas têm endereço certo. Ao se referir aos “subterrâneos de militâncias expostas em perfis falsos nas redes sociais que difamam pela internet”, o Globo, logo O Globo, que tanto luta, historicamente, pela liberdade de imprensa e de expressão, que acusa qualquer tipo de regulação aos meios de comunicação, mesmo daqueles que são concessão pública, de golpe na democracia, parece defender uma regulação e controle do uso da internet e das redes sociais que impeça o anonimato e censure as mensagens que possam ser “difamatórias”. Se pudesse decidir, eu toparia: desde que seus veículos não possam publicar notícia sem citar a fonte, nem citar uma fonte que não cita a sua fonte (como o misterioso e nada investigado advogado dos rapazes que teriam soltado o rojão que atingiu o cinegrafista da Band) e que, naturalmente, possam ser controlados e processados por toda informação difamatória que divulgam. Vai faltar advogado mas, por mim, negócio fechado.

A segunda distorção estaria nos “sindicatos de jornalistas aparelhados e desconectados da profissão”. Aqui o alvo é o sindicato dos jornalistas do município do Rio de Janeiro, que, ao contrário do (a) próprio (a) Globo, manteve uma postura ética de não acusar sem provas, não responder a uma tragédia com a grita por mais sangue e ainda teve a ousadia – muito perigosa – de colocar em pauta a falta de equipamentos mínimos de segurança, como capacete e colete a prova de bala, dos jornalistas em serviço nas manifestações, o que é responsabilidade das empresas empregadoras.

“Desarmem-se e tentemos o debate”

O aparelhamento seria do PSOL, já que a presidente do sindicato foi assessora do deputado estadual Marcelo Freixo, como descuidadamente, quase sem querer, o Globo informou em matéria plantada sobre eventuais “críticas” ao sindicato. A desconexão com a profissão é uma forma sintética de dizer que esse sindicato tem ouvido muitos profissionais que trabalham em imprensa alternativa, comunitária, institucional ou mesmo em assessoria de imprensa. Para o Globo, só é jornalista, só está “conectado” com a profissão, quem trabalha na grande mídia. Muitos argumentos poderiam ser usados para responder a essa referência irresponsável, mas mais vale a fala de uma jornalista do próprio Globo. Vejam o que Flavia Oliveira, colunista do grupo Globo, postou no seu Facebook: “Por ter, no mundo virtual do Facebook, cobrado posições mais firmes do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro na defesa de nossa categoria, ontem à noite estive no encontro organizado pela entidade. (…) Presentes, cerca de 50 jornalistas; os do chamado jornalismo comercial enchiam os dedos de uma mão.

(…) O que deu para constatar foi que nossa profissão, hoje, está mais diversificada do que nunca. Havia profissionais da imprensa sindical, comunitária, do movimento social, da academia, de entidades de classe de outros estados, de assessorias. Havia muitos jovens, com visões românticas e ideologizadas do mercado de trabalho e dos caminhos de luta. Há muita gente preocupada com a profissão e, fortemente, com o país, com as causas sociais.

De coração, não me senti numa entidade aparelhada. Ouvi e fui ouvida, com serenidade e educação, mesmo expressando posições diferentes dos demais. (…) As propostas que apresentei (…) foram anotadas pela diretoria. (…) Nem a ausência nem a crítica destrutiva ajudam. Muitos de nossos jovens colegas têm conexões no movimento social e podem ajudar a dissolver a hostilidade aos profissionais da grande imprensa. A eles, podemos explicitar nosso papel. Afinal, tantas denúncias que estão nos protestos saíram de nossas páginas e telejornais. Companheiros, desarmem-se e tentemos o debate. Racional e respeitoso (…)”.

Quem tem que explicar o quê?

Na sequência vêm as “universidades transformadas em centros de doutrinação política”, que não sei se tem endereço certo ou se é apenas o ataque às instituições públicas e à educação que vai além da pura técnica voltada para a empregabilidade. Na dúvida, pulemos. Por fim, são citadas as “funções desvirtuadas em assessorias de partidos políticos. No parágrafo seguinte, o editorial vai direto ao ponto: “O crime jogou luz sobre a inaceitável atuação do gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), em defesa de vândalos. Ele e partido precisam explicar a função dupla de Thiago de Souza Melo, assessor do deputado, pago, portanto, pelo contribuinte, e, ao mesmo tempo, advogado de black bloc e similares”, diz referindo-se à participação voluntária desse assessor no Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, que defende presos durantes as manifestações.

Legalmente, como já foi explicado, não se requer dedicação exclusiva do cargo de assessor parlamentar. Politicamente, estranho seria se um assessor do Freixo, conhecido e reconhecido por sua trajetória de defesa dos direitos humanos, trabalhasse também para uma ONG do deputado Jair Bolsonaro; ser voluntário em uma instituição de direitos humanos parece, no mínimo, coerente e deveria ter contado ponto no currículo na hora da sua seleção. Resta, então, o problema ético, alardeado em toda a imprensa, a partir da “denúncia” do Globo: como alguém pago com dinheiro público pode defender vândalos que atacam o patrimônio público? O que o Globo esqueceu é que a lei estabelece que todos têm direito de defesa – para isso existe a defensoria pública, inclusive –, o que não significa que serão absolvidos ou soltos. Com a exceção de um morador de rua condenado a cinco anos por portar um pinho sol que ele diz que usaria para limpar o local onde mora, todos os “vândalos” que o DDH defendeu no Rio de janeiro foram soltos, não pela influência deste ou daquele parlamentar, mas porque não havia provas contra nenhum deles.

Não é porque um jornalista morreu, tragicamente, que vamos esquecer a arbitrariedade da prisão de mais de 70 pessoas em frente à Câmara de Vereadores do Rio, no dia dos professores, no ano passado, entre os quais estava um estudante de comunicação, um pesquisador da Fiocruz – que não são mais importantes do que os outros, mas ganharam destaque na página dos próprios jornais como prisões arbitrárias. A polícia prendeu ilegalmente, o DDH (com e sem assessor de Freixo) fez o trabalho que a lei garante, a justiça soltou. Simples assim. A parte complexa dessa história foi a tortura psicológica sofrida por essas pessoas nos presídios por que passaram e a capa já considerada histórica do Globo comemorando a prisão dos “vândalos”. No final das contas, quem tem que explicar o quê a sociedade?

Afirmação enigmática

O próximo passo é criminalizar, associando à morte de Santiago Andrade, a “campanha sistemática, via internet, contra os veículos da imprensa profissional”. Como se vê, o controle da livre expressão de opiniões e posições políticas na internet virou uma obsessão para um jornal que perde credibilidade a cada dia. Repetindo, porque nunca é demais: controlar a “imprensa profissional” é atentar contra a liberdade de expressão; criticá-la, verbalmente, utilizando-se dos poucos canais livres de informação que existem nesse país, também é. Confuso, não? Começo a desconfiar que liberdade de expressão é o apelido dado ao caixa que contabiliza os lucros das organizações Globo. Na sequência, o editorial defende mais uma vez o modelo da “mídia corporativa”, alegando que “é a publicidade privada que garante a independência de fato, ao contrário de sites, blogs e publicações bancados por verba pública”. Anos de discussão crítica no campo da comunicação alertam para a óbvia conclusão de que a dependência do poder econômico (leia-se, no caso, empresas anunciantes) não perde em nada para a dependência do poder político dos governos, ao contrário. Mas, como dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras, me abstenho de recuperar esses argumentos – até porque, convenhamos, são óbvios – e apresento a imagem de uma página do Globo de 13 de agosto de 2013, sagazmente selecionada pelo pesquisador da comunicação Rodrigo Murtinho, em que o banco Santander é estrela da notícia e da propaganda.

A outra parte da afirmação também é no mínimo curiosa porque, ao defender que a verba pública diminui a independência do veículo, o editorial esqueceu de dizer que, segundo dados da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República de 2012, a TV Globo, que faz parte do mesmo grupo do jornal, recebeu, sozinha, recebeu 43,98% da verba de propaganda do governo federal destinado à televisão. Em nome do bom jornalismo independente da grande imprensa, sugiro que os veículos da família Marinho abram mão dessa publicidade, deixando mais espaço, quem sabe, para que “sites, blogs e publicações” de menos envergadura sejam de fato “bancados pela verba pública”.

O editorial traz ainda um tanto de apelos sensacionalistas e infundados por “punição exemplar” e demonstração de que “lado” se está. Bobagens raivosas e violentas, tal como aquela que o texto visa denunciar. Não merecem comentário. Mas o que mais chama atenção nesse também já histórico editorial é o que ele antecipa sem querer. Lembremos que, no dia 12 de fevereiro, o acusado de ter soltado o rojão, Caio Silva de Souza, não tinha sido encontrado e, portanto, ainda não tinha começado a novela jornalística dos “agentes ocultos” que aliciam e financiam a violência nas manifestações. Pois bem, duas ou três frases antes de fazer referência ao assessor do deputado Marcelo Freixo, o editorial do Globo afirma, de modo, até então, enigmático, que “o importante agora é ampliar o debate sobre o que está por trás da morte de Santiago, além de processar e punir seus responsáveis diretos e indiretos”. Até então, a morte era anunciada como resultado da irresponsabilidade de vândalos/manifestantes que estavam brincando com fogo e acabaram provocando o inevitável; estampou-se em todos os jornais o veredicto do prefeito Eduardo Paes segundo o qual eles eram “filhinhos de papai mimados”. O que poderia haver “por trás” disso? Que tipo de responsável “indireto” poderia existir? Limitado ao dia em que foi publicado, esse trecho passa despercebido, enigmático. Mas, visto retrospectivamente, depois que o acusado chegou ao Rio acompanhado da polícia e da repórter da Globo; que o RJTV já lhe perguntou, poucas horas depois da sua chegada, sem mais por que, se ele era “convocado” para as manifestações, abrindo caminho para toda a história mal contada (e mal montada) que veio na sequência, acusando irresponsavelmente partidos e políticos escolhidos a dedo, esse desabafo do editorial do Globo começa a fazer mais sentido. Não sei não, mas acho que, sem querer, a notícia veio antes do fato. Será possível?

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Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em Serviço Social