Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Santiago e a imprensa

Em sóbrio artigo publicado no GLOBO anteontem, o historiador, cientista político e membro da ABL José Murilo de Carvalho critica uma suposta “grita generalizada , envolvendo até o Palácio do Planalto”, contra as ameaças à liberdade de imprensa, o que, de acordo com ele, representa mau jornalismo, visto que a mesma (liberdade) não estava em causa, já que o rojão que matou o cinegrafista Santiago Andrade, da TV Bandeirantes, provavelmente era destinado a um policial. Por um lado, é um ponto de vista corajoso, necessário contraponto aos exageros interpretativos que, naturalmente, inflamam alguns comentários de uma classe traumatizada pelos anos de chumbo e por casos recentes, como o de Tim Lopes, torturado e assassinado pelo tráfico de drogas.

Por outro lado, faltou ao acadêmico observar o quanto a liberdade de imprensa vem sendo, sim, cerceada por uma massa crítica multifacetada que, paralelamente aos atos de violência, viceja não apenas nas redes sociais e em diversos sites, mas também nos bares, nas áreas de lazer, nos estádios, ou onde quer que se discutam tanto assuntos relacionados ao caso de Santiago quanto os mais diversos casos nos quais a imprensa, naturalmente, e por função, atua diariamente.

É lógico que não me refiro, aqui, às críticas usuais de leitores e espectadores às coberturas ou aos editoriais dos jornais e televisões tradicionais, prática fundamental no inesgotável processo de aperfeiçoamento do jornalismo, uma atividade que integra a dinâmica social e, como qualquer outra atividade, deve ser observada e criticada, sendo que parte desta crítica é publicada diariamente nas páginas e nos sites dos próprios veículos e, maciçamente, no foro de debates independentes em que se transformou a internet. Refiro-me a um outro tipo de discurso, violento, que mistura noções e conceitos ideológicos de toda sorte com preconceitos semeados pela ignorância de indivíduos que canalizam ódios e frustrações aleatórios, difusos, contra o que se convencionou chamar “imprensa” e “mídias”, mas, na verdade, nomeiam o próprio jornalismo (atividade que independe do meio) como alvo.

Massa indefinida

Note-se que “imprensa” e “mídias” são instâncias altamente variáveis, desde uma máquina que imprime a qualquer produto que veicule informações, de um jornal a um livro, ou os grupos humanos que produzem este trabalho. Mídias, por sua vez, designam qualquer suporte de informação capaz de veicular mensagens, o que inclui os jornais tradicionais ou alternativos, as televisões, e, cada vez mais, o computador (ou celular, ou tablet) e seus blogs, sites, portais, redes sociais e até softwares. Ou seja, no momento em que um grupo de pessoas, ou um indivíduo, decidem publicar sistematicamente, em texto, áudio ou imagens, relatos, opiniões, denúncias etc, trata-se, aí, de uma mídia com determinado poder de influência. Essas mídias se comunicam, compartilham informação, unem-se, discutem, debatem o que quer que seja, de assuntos segmentados a outros de interesse geral. Um consumidor, hoje, de informação, tem a liberdade de escolher se vai ler um jornal impresso, um site tradicional ou uma centena de sites alternativos ou blogs de opinião. A própria massa de comentários sobre tais publicações, que, na internet, não precisam ser editados ou resumidos, constituem um tipo de mídia. Não à toa, a Mídia Ninja, durante as manifestações que tomaram conta do país em 2013, tornou-se um ponto obrigatório de observação dos fatos, embora seja ingenuidade achar que ali se esgotava toda a verdade dos mesmos, uma vez que se tratava de uma mídia engajada e comprometida com uma certa visão dos acontecimentos. Mesmo assim, ganhou espaço na mídia tradicional, em horário nobre (por exemplo, no “Jornal Nacional”), notadamente no momento em que desmascarou uma ação da polícia do Rio que pretendia responsabilizar um manifestante por algo que, na verdade, fora plantado pelas forças de repressão.

Por isso a atual onda de ataques verbais à “imprensa” e às “mídias” é um tipo de violência, e até de terrorismo, aí sim, que se traduz em cerceamento à liberdade de expressão, incutindo (para além das instâncias acionárias das empresas tradicionais), em repórteres, fotógrafos, articulistas, cinegrafistas, editores, a sensação de estarem sendo acusados de lacaios de um suposto estado repressivo, policial, absolutamente e sempre mentiroso e a serviço de uma teia detestável formada por polícia, bancos, governo, empresários, todos comprometidos com algo monstruoso que perpassa toda a vida do país.

Jornais, televisões, sites, tradicionais ou alternativos, têm virtudes e defeitos que variam de acordo com aspectos conjunturais que acompanham o correr da História. Ao rotular sem reflexão “a imprensa” e “as mídias” de inimigos de uma massa dispersa e indefinida, comete-se um atentado disforme e multidirecional ao próprio jornalismo, ao impulso de informar, de debater, de complexificar, de aprofundar, de somar e fortalece-se uma disposição destrutiva de subtração, de caráter obscurantista, na qual tanto informações legítimas quanto falácias se igualam numa masmorra maniqueísta.

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Arnaldo Bloch é colunista do Globo