Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um Amarildo sem polícia

Um fato, dois aspectos: a agressão homicida a uma pessoa e o ataque a um repórter por sua atividade. Misturar os dois aspectos é ruim para ambos e péssimo para a sociedade. A razão que levou Fábio Raposo Barbosa a se apresentar à polícia, por conselho de um advogado, é perceptível: está no seu braço. Ao usar manga comprida em sua apresentação à polícia, ele quis, e conseguiu, que ninguém prestasse atenção no seu braço, ali ou depois. O braço já dizia tudo a seu respeito. Sua agressividade já se expõe no tipo de imagem escolhida para tatuar-se: arma, punhal e lâmina de ataque. Estavam à vista no dia da baderna e terminariam por ser observadas para a busca de identificá-lo. Melhor apresentar-se com uma ficção e tatuagens à vista.

O disparo do rojão foi muito esclarecedor da índole criminosa que muitos ainda negam ao black bloc, use ou não esse nome. As imagens móveis mostram que Fábio e seu comparsa caminham em direção determinada, não ao acaso. O segundo avança para depositar o rojão em certo lugar do solo. E, é nítido, ajeita-o para ficar precisamente assim: em direção a uma pessoa de pé, sozinha, tão desprevenida que nem percebe o que se passa ali – está de costas, e é para suas costas que aponta o artefato conduzido por Fábio Raposo e apontado por seu comparsa.

Uma poderosa bomba de fogo e som em velocidade fulminante, dirigida, deliberadamente, contra uma pessoa indefesa. “Não havia a intenção de matar.” E precisaria haver? O que foi decidido fazer, o que foi feito, como foi feito e por que foi feito dispensava qualquer consideração sobre consequências.

Um Amarildo sem a PM. Foi esse o primeiro aspecto.

Muita emoção e pouco resultado

Passa-se com a minoria, mas faz parte da profissão de jornalista estar onde, por segurança, não deveria; meter-se com assunto que atrai problemas não controláveis; escrever na contramão da conveniência. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo registra 117 incidentes sofridos por repórteres, fotógrafos e cinegrafistas desde que manifestações degeneraram sob a ação de arruaceiros violentos. O número é alto demais. Mas não haveria muito o que fazer para que fosse significativamente menor.

A violência que coube nas telas das pouquíssimas TVs que a mostraram foi muito menor do que a violência real (o mesmo ocorre com a bandidagem das “torcidas” de futebol). Capacete, colete protetor, a indumentária individual atenua um ou outro incidente, e só. Entidades de jornalistas ontem procuravam encontro com o ministro da Justiça para pedir proteção ao trabalho de jornalistas. A proteção que governos podem dar é cerceadora do jornalismo, com espaços designados para estarem, ou policiais a acompanhar grupos limitando-lhes a escolha de direções e movimentos, nada que combine maior segurança e bom jornalismo. Onde e quando foi tentado, deu errado.

O número anotado pela Abraji vem, no entanto, de mais que da vulnerabilidade dos jornalistas. Vem de uma intenção que agora eliminou qualquer dúvida a respeito. Santiago Andrade não se tornou vítima por acaso. O escolhido da dupla de marginais foi o repórter, cinegrafista, jornalista. Que oferecia, sozinho, de costas, o momento perfeito para os dois tipos facinorosos. Nem sabiam quem era, para quem trabalhava, o que pensava. Era um repórter-cinegrafista e então devia ser a vítima do explosivo levado exatamente para um ato facinoroso, qualquer ato facinoroso com qualquer consequência.

Uma pessoa, não importa quem, foi assassinada por arruaceiros que se valem de manifestações a serem pacíficas. Violência tão claramente deliberada que apaga toda dúvida remanescente sobre a necessidade de providências contra crimes a título de manifestações democráticas.

Um repórter foi assassinado na ação profissional de registrar uma arruaça que tende a reproduzir-se, como anunciado em vários Estados. Uma tragédia anterior levou à melhoria de condutas e possíveis proteções para as coberturas de risco. É ocasião de avançar nessa linha, de jornalistas para jornalistas.

Misturar os dois aspectos cria muita emoção e pouco resultado para o que a sociedade precisa.

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Janio de Freitas é colunista da Folha de S.Paulo