Em junho do ano passado, no auge das manifestações, aproveitei de outro fórum na Internet para sugerir a proibição das máscaras em manifestações políticas. Como aquele fórum conta com a presença de vários simpatizantes de posições essencialmente esquerdistas, fui rapidamente tachado de intolerante, fascista, e assim vai.
Agora, o governo brasileiro – que se gaba de posições minimamente esquerdistas – prepara legislação para, efetivamente, proibir máscaras. E as vozes contrárias têm sido poucas.
O presidente da Força Sindical, Miguel Torres, apareceu na Folha de S.Paulo chamando o projeto de “antidemocrático e chavista”.
“Parece que estamos na Venezuela”, dizia Torres. “O que nos causa estranheza é ver integrantes do governo Dilma, que sofreram a repressão do Estado na época da ditadura, quererem agora criminalizar as manifestações com uma espécie de A-I 5 social.”
Mas Torres tem sido uma voz mais ou menos solitária, pelo menos na grande imprensa. E na mídia social, também não apareceram estrondosas reclamações, pelo menos a julgar pela amostragem pequena e certamente pouco científica que fiz.
Sem efeito
O que mudou? Obviamente, a morte do Santiago Andrade foi um divisor das águas. Gostaria de pensar que seria irrelevante o fato da vítima ser jornalista, mas francamente tenho minhas dúvidas. Qualquer morte, tão dramaticamente registrada em vídeo e fotos nas suas causas e no seu desfecho, seria manchete, e politicamente impactante. Mas tenho anos demais, seja de trabalhar como jornalista, seja de acompanhar a notícia, para manter a ingenuidade de pensar que todos os mortos são iguais.
Fosse Andrade um policial? Um turista americano? Ou simplesmente outro manifestante, no meio da multidão? Ou um mendigo? Em todos estes casos as grandes redes de televisão teriam dedicadas tantas horas à sua cobertura? Os nobres ministros e legisladores iam se sentir tão pressionados a atuar, com tanta pressa quanto agora? E as vozes contra a proibição do anonimato em atos políticos seriam tão solitárias?
É conveniente pensar que a morte do cinegrafista mudou a opinião pública, pelo menos na questão nevrálgica que é o uso de máscaras em manifestações – algo que efetivamente abre caminho para violência. Mas, a julgar por duas sondagens do Datafolha, isso não foi o caso.
Em setembro do ano passado, o instituto de pesquisa identificou 89% dos paulistanos como contrários ao uso de máscara ou rosto coberto durante protestos. E agora em fevereiro, conforme Datafolha, 90% dos cariocas se declararam contra máscaras. Enquetes diferentes em cidades diferentes, mas com ordem de grandeza parecida o suficiente para sugerir que a população não mudou de opinião de repente.
Não ficou contra os mascarados por causa da morte no Rio. Sempre esteve contra. O que mudou, aparentemente, foi a percepção do governo federal, que sacou seu calculador, teclou “morte”, mais “Copa”, mais “eleição” e não gostou do resultado.
Agora ficamos sabendo que, desde setembro, o Ministério da Justiça vem preparando um pacote de medidas, entre as quais penas bem mais duras para a destruição do patrimônio público e alguma maneira de acabar com o anonimato, mas somente em manifestações políticas. Máscaras no Carnaval e festas populares, sem problema.
Deve trazer também algo sobre policiamento de passeatas, proteção para jornalistas profissionais e talvez a proibição da polícia reprimir pessoas que fotografam manifestações – algo que sinaliza o crescimento e reconhecimento do jornalismo cidadão. Aparentemente, a legislação proposta é fruto – entre outras – de um estudo de leis parecidas em três dezenas de países.
Em setembro, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto de lei que proibiu máscaras em protestos. Foram 12 votos contra, de deputados de vários partidos: PR, PSOL, PSDB, PPS, PT e PSD. Alguns alegaram inconstitucionalidade, porque só o Congresso Nacional teria poder de legislar sobre o assunto; outros por entender que a proibição seria uma restrição indevida da liberdade de protestar.
O deputado Marcelo Freixo, do PSOL, viu inconstitucionalidade porque – conforme reportagem do G1 – “o uso de máscara não é anonimato. A máscara é um símbolo de protesto. Essa lei é um grande equívoco, que só vai criar mais conflitos nas ruas, criminalizando quem decidir usar máscaras para protestar”.
Sancionada dois dias depois, a lei carioca obviamente não surtiu efeito. Para José Mariano Beltrame, o secretário de Segurança no Rio, faltaram as penas mais duras que só uma lei federal pode proporcionar.
Espírito republicano
Também há juristas contra qualquer proibição. Rodrigo Dornelles, advogado que trabalha no departamento jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, escreveu artigos e deu entrevistas para manifestar sua opinião: “Se o poder público falha em distinguir aqueles que se manifestam daqueles que cometem crimes, não pode transferir sua incompetência para os cidadãos, restringindo sua esfera de liberdade indevidamente”, dizia ele em artigo publicado pelo Conjur, antes da morte do cinegrafista.
É argumento interessante, mas abstrato. Ignora a realidade. Mesmo com uma polícia bem treinada e ciente dos direitos dos cidadãos, o trabalho de coibir violência numa manifestação de rua será sempre dificultado pela incapacidade de individualizar culpa, o que frequentemente exige identificação, antes da apreensão.
Não adianta o policial testemunhar alguém com jeans, camiseta escura e mascara de Guy Fawkes jogar um coquetel molotov, para cinco minutos depois apreender alguém de físico parecido, usando jeans, camiseta escura e mascara de Guy Fawkes. E os bem-documentados deslizes da polícia brasileira não podem ser usados como argumento para dificultar ainda mais seu trabalho – pelo contrário, facilitando o trabalho da polícia é que podemos exigir padrões éticos e operacionais mais altos. Como revelam as sondagens da Datafolha, nove em cada 10 brasileiros entendem disso, mesmo que alguns juristas não.
A nova lei será enviada em breve ao Congresso, onde já têm outras propostas em discussão. Suponha-se que o governo vai querer urgência – leia-se, em vigor antes da Copa – e a pressão do Executivo sobre o Legislativo deve ser forte, como também podemos esperar que a grandes redes de televisão coloquem debaixo da lupa qualquer deputado que ensaie resistência. Terão os nobres legisladores, que às vezes parecem gastar a maior parte do seu tempo chantageando o governo para obter cargos, o espírito republicano necessário para debater, rápida mas plenamente, um assunto tão importante? Veremos…
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Brian Nicholson é economista, autor de A Previdência Injusta – Como o Fim dos Privilégios pode Mudar o Brasil (Ed. Geração, 2007)