Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Valesca, Sheherazade e o discurso da violência

O que têm em comum Valesca Popozuda e Rachel Sheherazade? Uma é carioca, nascida em 1978, funkeira, ex-frentista, ex-rainha de bateria de escola de samba; outra é paraibana de 1973, formada em jornalismo, apresentadora de TV. Ambas, contudo, são mulheres fortes e independentes, bem remuneradas, reconhecidas em suas áreas e significativamente identificadas com seus públicos. Ambas são o que se convencionou chamar de “formadoras de opinião”. Falam para uma vasta audiência – na TV, no rádio, na internet, em redes sociais e plataformas como o YouTube. Suas provocações repercutem, inflamam discussões.

Mas não é a plataforma midiática, a idade ou a remuneração o maior ponto de contato entre essas duas celebridades do século 21. Sheherazade e Popozuda estão ligadas, sobretudo, pelo discurso da violência. Popozuda, em seu mais recente sucesso, “Beijinho no Ombro”, invoca, logo na primeira estrofe, sua superioridade bélica: “Desejo a todas inimigas vida longa/ Pra que elas vejam a cada dia mais nossa vitória/ Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba/ Aqui, dois papos não se cria e nem faz história”. Adiante, desfila o refrão “Beijinho no ombro pro recalque passar longe/ Beijinho no ombro só pras invejosas de plantão”.

A violência pode ser material ou simbólica. A violência física abrange, por exemplo, policiais contra manifestantes, manifestantes contra policiais, manifestantes e policiais contra profissionais de imprensa e contra os cidadãos em geral. Manifesta-se em balas de borracha ou de chumbo (o tiro), manifesta-se em socos e pontapés contra homossexuais e minorias desprotegidas (a porrada), manifesta-se em explosões de gás, granadas, coquetéis molotov (a bomba). Em explosões de intolerância, sobretudo, a violência se manifesta.

Contos que incentivam a violência

Popozuda exerce uma prerrogativa da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948. “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão”. Exerce ainda o direito constitucional de manifestação de pensamento. Mas, mais do que falar de direitos, e de como os direitos se atritam e chocam, gostaria de falar de deveres. Ou melhor, de ética – e de felicidade. Em um clipe visto mais de sete milhões de vezes até meados de fevereiro, a funkeira aparece em variados trajes de realeza, reafirmando a sua supremacia sobre o mundo. Em dado momento, assume um look que faz lembrar ilustrações de As Mil e Uma Noites, a milenar antologia de histórias orientais narradas por Xerazade, Sherazade ou Sheherazade (a grafia varia).

Em As Mil e Uma Noites, Xerazade é mulher do rei Xariar (ou Shariar). Traído pela primeira esposa, o monarca adota uma solução heterodoxa para preservar sua reputação. À noite, desposa uma mulher. Pela manhã, decreta a sua morte. O ritual é repetido diariamente, e diariamente morrem as mulheres de Xariar – que, assim, permanece um ilibado cidadão de bem.

Mas Xerazade tem algo que as suas trágicas antecessoras não tinham. Inteligência, cultura, talentos retóricos e narrativos. Por mil e uma noites, ela conta histórias ao rei Xariar. Interrompe sempre a narrativa pela manhã, para avançá-la na noite seguinte. Prolonga, assim, a sua vida, até que o rei desista definitivamente da execução.

Noite após noite, Sheherazade, a apresentadora do telejornal noturno SBT Brasil, conta suas fascinantes histórias. Mas, ao contrário daquelas narradas pela rainha mítica, os contos de Rachel não visam à preservação de vida alguma. Longe disso, não raro incentivam a violência. Por consequência, flertam com a morte.

Violência reproduzida

Mas a violência da Xerazade brasileira não é a do “tiro, porrada e bomba”. Mais sutil sem ser menos destrutiva, sua violência é simbólica. Funda-se em um discurso que segrega o espaço social entre grupos que considera legítimos – “cidadãos de bem” – e grupos marginalizados – os “cidadãos do mal”. E os apenas cidadãos, que dispensam adjetivos reducionistas, onde ficam nessa história? Parece não haver espaço para eles, para nós. A violência simbólica é simplista, reducionista, facilmente apreensível. É, aliás, necessário que seja facilmente reprodutível. Toda loira é burra, todo baiano é preguiçoso, todo carioca é malandro, todo favelado é bandido etc. Propõe-se, assim, inconteste. Mate um bandido ou leve um bandido para casa. Seja do bem ou seja do mal. A escolha é sua.

Naturalmente, a “escolha” que se coloca é falaciosa. A violência simbólica força a mão para que se estabeleçam os “devidos lugares” de cada um na sociedade. É uma violência aguda, que busca fazer com que a sociedade reforce, reitere e reconheça que o lugar do pobre, em geral negro, é na margem. É na marginalidade das favelas ou dos subempregos. O lugar do rico, em geral branco, é no centro. No centro de tudo.

Sheherazade deixa claras as suas convicções a esse respeito. Na verdade, porém, não há novidade alguma em seu discurso, nenhuma ideia nova, nenhum argumento iluminador. Está apenas reproduzindo uma violência simbólica anterior a todos nós ao repisar que o lugar do pobre é na periferia, distante dos olhares e, principalmente, das consciências dos cidadãos de bem. Um discurso que, no Brasil, remonta à própria colonização.

Liberdade de expressão tem limites

Assim, o “devido lugar” do adolescente negro que pratica furtos na praia dos brancos é amarrado a um poste. E a maior violência desse discurso é a de tentar convencer a vítima, e não o criminoso ou as testemunhas do crime (todos nós), de que as correntes são o “lugar de direito” do “marginalzinho”. Não importa muito se ele chegará às correntes por meio do processo legal de uma investigação, de um julgamento e de uma condenação, ou se chegará a esse lugar por meio de justiceiros sanguinários. O importante é, sobretudo, que esteja naquele lugar: acorrentado.

Ambas, Valesca e Sheherazade, expressam suas controversas opiniões. Na era da internet, todos temos grande facilidade de veicular nossas opiniões sobre tudo. Mas isso não é necessariamente bom. Expressa sem ponderação nem responsabilidade, a opinião ligeira municia a violência simbólica, o preconceito, a intolerância. O cenário é tenebroso, sobretudo quando jornalistas, agentes historicamente eleitos para promover a mediação social, aderem ao histrionismo dos que veem o mundo dividido entre cidadãos de bem e não cidadãos – gente que pode e deve ser amarrada e espancada impunemente.

A liberdade de expressão tem limites, em especial em veículos explorados por meio de concessões públicas, cujo dever é, portanto, defender o interesse público. Há razões para que não possamos invocar a liberdade de expressão para propagandear ideário nazista, antissemita, racista ou terrorista. Temos de ser melhores do que isso.

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Renato Essenfelder é escritor, cronista e professor de Jornalismo