Ainda era general-presidente o João Figueiredo, mas tempo já de reabertura, quando um ministro militar, em curta entrevista à televisão, afirmou que estava na hora de as forças armadas retornarem à caverna. Isto mesmo, caverna em vez de caserna, num evidente ato falho. Aconteceu-me testemunhar o deslize freudiano, mas não fui disso o único telespectador e me lembro de ter abordado o assunto com colegas na época. Ato falho, bem se sabe, não é mero acidente linguístico ou erro comum, é sintoma a ser interpretado.
É bem possível que tenha sido um lapso dessa ordem a frase da ministra Miriam Belchior ao se referir à atual chefe de governo como “presidenta Lula” (20/2, ver aqui). A interpretação, óbvia, pode ser encontrada em ditos e textos numerosos, como o do líder do PSDB na Câmara dos Deputados: “O que resta, hoje, é o retrato da Dilma real: uma presidente sem liderança, sempre em busca e à mercê de seu patrono, o ex-presidente Lula” (O Globo, 3/2/2014). Para o deputado opositor, a presidenta é “uma personagem de ficção”, mera “imagem marqueteira”.
Como se vê, o conteúdo do ato falho é pesado. Mas a alternativa é dificilmente sustentável, já que um engano deliberado entraria na categoria (também freudiana) do chiste em sua relação com o inconsciente, implicando uma agressão incompatível com a permanência da ministra no cargo. Pelo que se sabe, ela continua lá, em plena atividade.
Só que, em tempos pré-eleitorais, o ato falho pode ter algum interesse para alguém disposto a avaliar todo o escopo de simpatia ou carisma da presidenta da República em exercício. No que tange ao espaço público, ela passa na prova com boa nota: as pesquisas do momento, com 47% de opiniões favoráveis, garantem que seria reeleita no primeiro turno. Nos bastidores do espaço privado, seja no off dos gabinetes politiqueiros ou no que ressoa em notas da pequena política nos jornais, ela parece tropicar.
Cromossomos da banalidade
São muitos os casos, variados os comentários. A coluna de Ancelmo Góis, no Globo, no primeiro dia deste carnaval, relatava que tristeza é o sentimento confesso de empresários após audiência com a presidenta, ainda quando têm seus pleitos atendidos, em franca diferença com o que ocorria em encontros com FHC e Lula, mesmo em pleitos não atendidos. Semanas atrás, a coluna de Noblat no Globo afirmava que, com exceção dos generais-presidentes durante a ditadura civil-militar, nenhum presidente da República teria sido tão autoritário quanto Dilma Rousseff.
Aqui, é forçoso obtemperar que autoritarismo pessoal não é o mesmo que autoritarismo na vida pública. A carranca dos generais-presidentes era a persona de um regime que violava as liberdades democráticas e se acumpliciava com a violação dos corpos pela tortura nas masmorras militares. A carranca da presidenta, ao contrário, é um tônus privado que não mancha a Constituição nem as garantias cívicas. Em outras palavras, a sua alegada ausência de simpatia afetaria apenas à elite que trabalha ou tem audiências com a chefe de governo.
O povo – a turma dos 47% e da baixa renda – está fora disso.
Na verdade, há setores populares que veem com bons olhos a escassa afabilidade da presidenta, identificando-a com a disposição afetiva daqueles impacientes com a lentidão dos auxiliares ou sempre prontos a dar uma descompostura nos que falham. No dia do apagão, em fevereiro, quando as câmeras de televisão flagraram-na através da vidraça do palácio gesticulando ao telefone e andando de um lado para outro, a interpretação óbvia era de que o interlocutor, ministro ou não, estava levando uma bronca federal.
Por causa disso, comenta-se à boca pequena que alguns convidados para o ministério declinaram da honraria e que outros deixaram, aliviados, o cargo de ministro. É do conhecimento geral que não se trata de comportamento novo por parte da presidenta: antes de se eleger, ainda chefe da Casa Civil no governo Lula, suas broncas já eram federais. Sabe-se de um dirigente de estatal que chorou.
Claro, do ponto de vista do marketing eleitoral, estão sempre presentes as questões de refinamento da cosmética corporal dos candidatos, da mensuração do carisma, da telegenia e das eventuais oscilações nas pesquisas. Já morreu a grande política, aquela das causas públicas e dos projetos nacionais, mas o seu cadáver ainda se alimenta, em função dos ritos eleitorais, de cromossomos da banalidade pessoal da classe política. Disso vivem as colunas “políticas” da grande imprensa, disso vivem também os marqueteiros, ocupados em construir outros personagens de ficção com materiais de segunda mão dos folhetins.
Sorriso fácil
No fundo, é uma mostra de saúde moral fechar a cara ao conteúdo dos bastidores do poder em Brasília: a cupidez dos empresários que jamais pararam de mamar nas tetas do Estado, o espetáculo triste dos parlamentares ao redor das sobras do Orçamento, a convivência com ministros mais apagados do que as perspectivas do sistema elétrico.
Afinal, de que tanto riam os antecessores da presidenta? Efeito de marketing ou real alegria de viver? A presidenta destoa, isto é certo. Mas o poder é fálico, e a reeleição é o caminho à frente. Como ela mesma disse: “Podemos fazer o diabo na hora da eleição”. É possível, portanto, que no calor da campanha e diante do sorriso fácil dos contendores, a presidenta Dilma Rousseff seja compelida a sorrir. Ainda que por ato falho.
******
Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro