Uma história de vida são muitas histórias sobre uma vida. Um livro com vários livros. Mas alguns destes não serão lidos, pelo menos enquanto a proibição de biografias não autorizadas for uma realidade. E não estamos falando apenas do Brasil, onde o tema é discutido em um projeto de lei pela Câmara dos Deputados e, também, em uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Desta vez, o cenário é a Espanha e o centro da polêmica é a vida e a obra do escritor argentino Julio Cortázar. Em 2014, quando se completam 30 anos de sua morte e o centenário do seu nascimento, uma biografia escrita pelo catalão Miguel Dalmau, que seria publicada pela editora Circe, foi proibida pela viúva de Cortázar, Aurora Bernárdez, por meio da agência literária Carmen Barcells. Dalmau é um biógrafo reconhecido na Espanha por obras como Los Goytisolo (1999), sobre três irmãos herdeiros de uma família de empresários catalães, e Jaime Gil de Biedma. Retrato de un poeta(2004), sobre a vida e a obra do poeta barcelonês.
Dalmau trabalhou na pesquisa sem contato com a família, e acredita que Aurora talvez não soubesse do livro. Segundo ele, a viúva, que detém os direitos sobre a obra, estaria cansada de receber tantas solicitações para a autorização do uso de citações, por isso passou a negar qualquer pedido. Ao pedir a autorização para a reproduzir trechos da obra de Cortázar, a solicitação foi negada por meio da agência literária Carmen Barcells. O biógrafo voltou a trabalhar na publicação retirando algumas citações e mantendo apenas o que era considerado, por ele, imprescindível. A nova negativa veio acompanhada de um aviso. “Minha editora Circe se retirou da batalha ao receber mensagens da agência onde não só negavam a reprodução de textos, mas também ameaçava sutilmente a editora com um processo judicial se esses textos fossem reproduzidos”, conta.
Dalmau suspeita de mais um motivo para a proibição. “Talvez tenham a advertido que eu sou um biógrafo pouco ‘hagiográfico’, muito pouco obediente. Eu acho que não vale a pena escrever uma biografia, se você não contribui com algo para jogar uma luz ao desconhecido.” Coincidência ou não, o curioso nesta história é que Aurora acaba de lançar como coautora, ao lado de Carles Garriga, o álbum biográfico Cortázar. De la A la Zeta (Cortázar. De A a Z), pela editora Alfaguara.
Semente e coração
A pesquisa sobre a vida de Julio Cortázar tomou alguns anos de trabalho de Dalmau, na busca por conhecer o escritor argentino “de vários ângulos”. O que descobriu foi um homem que não era “como nos tinham vendido”. Segundo o biógrafo, como todo artista e como todo ser humano, Cortázar foi habitado por demônios – e soube combatê-los e vencê-los. Esse lado sombrio está nas páginas dos livros do autor, mas é desconhecido do público. “Demônios muito fortes como o complexo de Édipo, os impulsos incestuosos em relação à sua irmã, fobias profundas, impulsos suicidas e até perversões sexuais. Tudo isso aparece em sua obra, mas ninguém se atreveu em acender a luz. Um biógrafo deve ser limpo e corajoso”.
Por sua independência, Dalmau pagou o alto preço da censura, atitude que, para ele, vem carregada de hipocrisia, sempre tão prejudicial à liberdade de expressão. Apesar de vivermos em uma “era de exibicionismo gratuito e de superexposição da intimidade”, a censura de sua biografia mostra que ainda “existem pessoas com poder que nos impedem de trabalhar a fundo sobre as figuras de relevância. Desde que com respeito se pode abordar tudo”, argumenta o autor.
A censura imposta a Dalmau, infelizmente, não é um caso isolado na Espanha. De acordo com o escritor, já aconteceu muitas vezes, como a tentativa de proibição de duas biografias escritas pela escritora Anne Caballé, uma sobre poeta Francisco Umbral, El frío de una vida (Espasa, 2004) e outra sobre a escritora Carmen Laforet, Uma mujer em fuga (Ed. RBA, 2010), em coautoria com Israel Rolón.
Apesar da proibição, Miguel Dalmau acredita que o mais importante foi feito, a biografia existe e a história de Julio Cortázar foi contada, mantendo a sua independência, vestindo “a pele do personagem”. “O livro já foi escrito. Recebi sua semente, o mantive por muito tempo em meu ventre, ouvi seu coração e seus movimentos suaves em minha barriga, o vi nascer, o ouvi gritar, o recostei em meu peito, me sorriu e eu lhe dei um nome. Quando alguém sente isso, não é tão importante o batismo. Me sinto um afortunado. Algum dia essa criatura sairá à rua e será de todos.” Assim esperamos, na Espanha e no Brasil.
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Karine Moura Vieira é jornalista e professora na ESPM, doutoranda na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).