Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eufemismos

Quase todos os estudiosos que tratam das funções da linguagem destacam a função referencial, isto é, o fato de que falar é, em alguma medida, falar do mundo: de coisas por meio de palavras ou expressões e de fatos por meio de proposições.

Assim, uma palavra como ‘árvore’ refere-se a uma coleção de indivíduos com determinadas características; ‘pinheiro’ refere-se a um tipo de árvore com determinadas características; ‘este pinheiro’ refere-se a um indivíduo particular (que, possivelmente, está no campo de visão do locutor e do interlocutor).

‘A neve é branca’ ou ‘o presidente viajou’ referem-se a fatos. O primeiro, supostamente, é um fato em qualquer lugar e tempo, enquanto que o segundo só o é para uma região e durante um período de tempo.

Claro que nem tudo é tão pacífico. Se, em vez de ‘a neve’, dizemos ‘os vândalos’, a relação entre palavra e coisa (pessoas) pode ser considerada segura em uma língua e em certa época, mas também pode ser contestada (eles não são vândalos, são manifestantes).

Ou seja, nem sempre a referência é aceita por todos os falantes de uma língua. Estudos de discursos particulares mostram que esse fenômeno é de extrema relevância. De fato, é um dos mais relevantes, se se quer conhecer uma língua de forma a incluir o sentido, que, afinal, talvez seja o que mais importa.

Considerem-se, como exemplos facilmente aceitos, a famosa novilíngua do romance1984, de George Orwell, ou os fatos descritos em LTI, a linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer. Provavelmente, o consenso entre os falantes sobre o que uma palavra refere ou uma proposição afirma se restringe aos campos em que não há disputa.

Até mesmo os regionalismos, que têm pouca ou nenhuma carga ideológica, testemunham as discrepâncias no interior das línguas, de forma que a tese de uma língua comum, em um país, não passa de fato de uma fórmula ideológica, com evidente peso político.

Uma coisa pela outra

Consideremos, agora, um fenômeno particular. É fato que, eventualmente, além das divisões sociais que uma língua indica (é privatização ou concessão, vandalismo ou manifestação política), certas palavras têm grande peso histórico, e negativo.

O movimento chamado de ‘politicamente correto’ fornece muitos exemplos de palavras que estariam carregadas de conotações negativas. Por isso, prega que elas devem ser evitadas, e substituídas por palavras sem aquela carga. Melhor ainda se forem substituídas por palavras de carga positiva.

Uma nota lateral: muitos defensores dessa tese acreditam que palavras negativas fortalecem cognitivamente atitudes negativas (o inverso sendo também verdadeiro), de forma que a língua pode ser uma fonte de preconceitos ou de seu fim.

Se, em vez de ‘empregada doméstica’, dissermos ‘auxiliar’ ou ‘secretária’ (estas pessoas que são praticamente (!) da família, isto é, que não são…), estaremos lutando pelo fim de uma atitude negativa em relação a tais profissionais (mesmo que achemos que é o fim do mundo que agora elas tenham direito ao FGTS).

Se, em vez de ‘cliente desde…’, constar no talão de cheques que Fulano é ‘amigo desde…’, a relação leonina entre banco e cliente se torna menos pesada, menos injusta, menos assimétrica.

São os famosos eufemismos, que, por um lado, se destinam a evitar empregos de termos tabus (em vez de ‘morrer’, diz-se ‘falecer’ / ‘faltar’) e, por outro, a evitar termos marcados negativamente.

A fronteira entre o que parece uma questão de boas maneiras (‘minha esposa’ em vez de ‘minha mulher’ – as mulheres não dizem ‘este é meu homem’) e uma questão ideológica que divide grupos sociais nem sempre é muito clara, ou só o é nos casos extremos.

Diz-se ‘diacho’ por ‘diabo’ por superstição, ‘pomba’ por ‘porra’ e ‘caraca’ por ‘caralho’ para evitar palavrões, mas também se diz ‘ocupação’ (da fazenda / da reitoria) porque não se aceita que se trate de ‘invasão’, ‘dinheiro não contabilizado’ por ‘caixa dois’ para evitar a confissão de um crime fiscal etc.

Pode-se dizer que isso é hipocrisia, que deveríamos (é uma questão de honestidade etc.) chamar as coisas por seu nome (ditadura / repressão / vandalismo). Mas, adotando uma perspectiva de analista, que nem sempre é fácil, percebe-se que é muito interessante dar-se conta de que é assim que as línguas funcionam. 

Mera questão semântica?

As sociedades são heterogêneas e grupos disputam poder, espaço, prestígio etc. A língua é um dos lugares nos quais tais disputas são visíveis.

Quando se diz que empregar uma palavra ou outra é mera ‘questão semântica’ (privatização ou concessão), porque supostamente o fato é um só, deixa-se de observar uma questão crucial: o papel da linguagem na materialização de uma ideologia, de uma visão de mundo, de uma filosofia.

Pode parecer que não, mas uma disputa sobre a legitimidade de uma palavra de cunho político é do mesmo tipo que outras disputas que envolvem linguagem.

Se, por exemplo, um presidente emprega um palavrão, diz-se que viola a liturgia do cargo. Se um cientista emprega um termo técnico e defende seu uso contra traduções que eventualmente se fazem (na divulgação?), diz-se que é elitista. Se um lacaniano se recusa a traduzir pedestremente as teses do psicanalista, diz-se que a obscuridade pretende fazer com que só iniciados compreendam.

Por trás dessas teses está sempre outra, sempre a mesma, e que é falsa: as coisas existem enquanto tais e há uma boa linguagem que fala delas sem rebuços, sem enganação, sem distorção.

Esta linguagem ‘objetiva’, cada um, modestamente, acha que é a sua.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas