Num momento em que divergir virou sinônimo de ofender, em que o debate público se reduziu ao contra ou a favor, em que qualquer tentativa de análise reflexiva é imediatamente taxada de “oposição” aos donos do poder e o açodamento verbal beira a intolerância, deve ser motivo de alívio e satisfação encontrar interlocutores dispostos a debater serenamente e a trocar ideias de forma “desinteressada”.
Sinto-me assim. E só posso agradecer a Sylvia Debossan Moretzsohn a leitura criteriosa que fez do ensaio “Mídia, democracia e hipermodernidade”, que integra meu livro As ruas e a democracia (FAP/Contraponto, 2013). Ela leu o texto com argúcia técnica e sensibilidade política, acusando falhas e incongruências que o fragilizariam. Fez isso com grande competência, a ponto quase de me empurrar para um beco sem saída.
Como a ideia, presente na sua crítica, é manter aberto e ampliar o debate, farei três tentativas de relativizar as objeções por ela apresentadas.
Não as contestarei, porque penso que são pertinentes e convidam à reflexão. Creio, porém, que estão superdimensionadas e, nessa medida, atacam o ensaio de forma unilateral, chapada demais, ao menos em parte.
“Equívoco recorrente”
A primeira observação parte uma concordância praticamente integral. Sylvia considera válido que o ensaio “privilegie uma tentativa de diálogo com o governo petista e as organizações de esquerda, apontando o maniqueísmo presente em teses que rejeitam em bloco a mídia como uma estrutura monolítica, necessariamente alienante, sempre a serviço dos piores propósitos – em suma, uma força a ser combatida e, se possível, eliminada”. Apesar disso, observa que o ensaio “dedica pouco espaço às engrenagens que servem à manutenção dos oligopólios na mídia brasileira”, e sem a consideração deste “outro lado” da questão a análise fica incompleta e perde força.
Ela está certa. O texto faz precisamente isso, pois seu suposto é que a “leitura” prevalecente em algumas áreas de esquerda que apoiam o PT e o governo Dilma Rousseff está enviesando a discussão política da mídia. É uma “leitura” simplista, que insiste em teses que me parecem equivocadas, seja diante dos fatos políticos correntes, seja diante da estrutura da mídia na atual fase da modernidade capitalista. Vê a mídia como sendo deliberadamente torta, mal-intencionada, a serviço do capital e, evidentemente, sempre contrária aos governos progressistas e à esquerda. Tentei apresentar alguns argumentos para sustentar que essa visão produz mais estragos políticos do que vantagens analíticas. Não olhei “o outro lado” (o das engrenagens que servem à oligopolização da mídia) porque não me julgo competente para fazê-lo e porque me parece que esse não é o ponto decisivo. Posso ter sido inconsistente, mas o programa do ensaio não se propunha a fazer reflexões teóricas mais sofisticadas sobre a mídia, como exige Moretzsohn, mas somente apontar a precariedade de uma argumentação que tem prevalecido na política das ruas e nas análises políticas à esquerda. Penso mesmo que nosso maior problema, hoje, não está na ausência de uma “teoria crítica da mídia” (coisa que de resto vem sendo feito de diferentes ângulos teóricos), mas na falta de uma “análise política da mídia” – separação que somente menciono aqui para facilitar a frase.
O segundo ponto diz respeito à teoria social com que tentei sustentar o ensaio. Considero-me um marxista gramsciano, mas estou radicalmente distante de ortodoxias dogmáticas. Teorias e análises que fujam de nossas escolhas filosóficas e acrescentem algo devem ser sempre bem recebidas, mesmo que provenham de campos “adversários”. Habermas, por exemplo, entendeu a estrutura da comunicação no capitalismo tardio. Ela é exauriente, e juntamente com sua teoria da ação comunicativa tem ajudado a atualizar o marxismo e a teoria crítica. O marxismo não é autossuficente, mas seu enquadramento metodológico e boa parte de seus “achados” teóricos e conceituais são indispensáveis para que se pense criticamente o mundo. Não dá, por exemplo, para discutir mídia e imprensa sem o conceito gramsciano de hegemonia.
Sylvia Moretzsohn considera que “o aspecto mais problemático do ensaio é o painel traçado a partir da opção pelo conceito de ‘hipermodernidade’, que está longe de ser consensual e é adotado sem a devida fundamentação, ao mesmo tempo em que é substituído por ‘modernidade tardia’ ou ‘radicalizada’”.
Bem, o fato de uma proposição não ser consensual não faz dela algo a ser rejeitado. Moretzsohn acha que eu me baseio em “autores festejados” que, justamente por serem festejados, não são rigorosamente lidos e criticados. Não compreendi bem a quem se refere, já que o texto cita pouquíssimos autores, festejados ou não. E como ela não os aponta, sua ressalva cai no vazio. Creio, além disso, que ela é superficial demais quando diz – repetindo um jargão dos teóricos refratários à necessidade de se caminhar rumo a uma sociologia mais audaciosa – que a vida atual não é muito diferente da vida moderna sob o capitalismo. Lembra mesmo que a ideia de que “tudo o que é sólido desmancha no ar” vem de 1848, que a velocidade é intrínseca ao capitalismo, que a globalização sempre existiu. Em suma, que hoje, na melhor das hipóteses, viveríamos uma transição movida pelo incremento de elementos e tendências presentes desde sempre na modernidade: uma transição entre duas quantidades, sem impacto qualitativo. A vida segue igual, as pessoas não mudaram, a mídia é a de sempre, continuamos a viver como nossos pais, nada teria sido muito afetado pelas novas tecnologias de informação e comunicação.
Na argumentação de Sylvia, nenhuma das metáforas com que se tem tentado captar o que há de novo no mundo atual tem serventia: ela não atribui dignidade a “hipermodernidade”, nem a “sociedade em rede”, “sociedade de risco” ou “modernidade líquida”. Ela reduz tudo isso a uma única e enorme superficialidade e, ao fazer isso, desqualifica todas essas formulações em bloco, em nome de uma teoria tradicional que ela não explicita. Além disso, acredita que os festejados autores são simplificadores, pois “tendem ao equívoco recorrente de apostar na tecnologia como motor das transformações sociais”.
Círculo fechado
Reitero que não sei de quem Sylvia Moretzsohn está falando. Nenhum dos autores que eu poderia ter utilizado para minhas análises são deterministas tecnológicos. Cito alguns: Habermas, Giddens, Bauman, Touraine, Beck, Lipovetsky, Castells, Harvey. Em nenhum deles existe a alegada ênfase na tecnologia como motor das transformações sociais.
Seja como for, creio que esse é o principal ponto de nossas divergências. Penso que o mundo hoje está de ponta-cabeça e que nossas teorias tradicionais não dão mais conta dele. Precisamos explorar novos horizontes, sob pena de não conseguirmos falar com a realidade efetiva e sim com uma realidade que somente existe em nossas cabeças. Cada época tem a mídia que pode ter, há determinações complexas que precisam ser captadas para que se estabeleça a estrutura de comunicação realmente existente. Se a época fez com que vida se alterasse, como creio, a mídia caminhou junto: diversificou-se, inovou-se, entrou em crise, adquiriu outra dimensão.
Para Moretzsohn, no entanto, as mudanças não foram expressivas. A própria internet não é vista por ela como matriz de novas culturas, hábitos, ideias e comportamentos, mas somente como uma “tecnologia subaproveitada”. Ela é radical nesse ponto: “a tendência na internet seria ampliar exponencialmente o alcance da estultice”. Em vez de melhorarem, as pessoas pioram e nada de novo ou promissor surgiu. Vejo essa visão como muito estreita e problemática.
No fundamental, as ressalvas de Sylvia Moretzsohn estão associadas a essa divergência de base, ou seja, a uma distinta avaliação do que está havendo de transformação em nossas vidas e em nossas sociedades.
O terceiro ponto tem a ver com o que Sylvia considera ser minha capitulação às “ilusões da horizontalidade”. Ela está convencida de que eu acredito que “não há donos ou proprietários do processo”, que “a internet não reproduz as relações de poder que estão na sociedade” e que ingenuamente aposto no senso crítico do cidadão, ao passo que “o comportamento corriqueiro na rede revela uma inconsequência assustadora, que tende a reproduzir automaticamente o que circula, seja por sua aparente verossimilhança, seja pela surpresa que desperta ou, simplesmente, porque é algo em que desejamos acreditar”.
Levando ao extremo, é como se eu estivesse desprovido de qualquer senso crítico, preso a aparências e crédulo no aumento da capacidade de autoconsciência dos cidadãos, ao passo que Moretzsohn se colocaria do lado oposto, vendo o fundamental e cética em relação a qualquer mudança, a qualquer democratização, a qualquer ganho de consciência e informação. Para ela, a mídia continuaria sob controle dos grandes oligopólios e não haveria novas mídias, nem mídias sociais, que mereçam crédito. Os cidadãos, por sua vez, persistiriam encantados diante da luz emanada das manobras ideológicas feitas pela mídia tradicional submissa ao capital. Regrediram à condição de “brucutus”, permanecendo tão alienados como sempre.
Talvez por isso ela tenha dado tanta atenção às incongruências que existiriam em minha tentativa de argumentar em favor da existência de um novo tempo sociopolítico e cultural. Ela parece convencida de que as instituições continuam estáveis, pautando a conduta das pessoas. Não haveria crise nessa área, mas o contrário: busca frenética por institucionalização, por vínculos coletivos, além de muito desejo de “comunidade”. A hipótese da “individualização” é entendida por ela como insustentável. As pessoas continuam dependentes de fontes autorizadas de informação, com pouca autonomia decisória e quase nenhuma envergadura crítica.
Estou num caminho oposto. Nas condições hipermodernas atuais (ou na modernidade radicalizada), as pessoas pensam cada vez mais com as próprias cabeças, processando reflexivamente informações e orientações que brotam sem cessar das lutas por hegemonia, como diria Gramsci. As pessoas são alcançadas por múltiplas informações, muitas vezes contraditórias entre si, algumas mal-intencionadas e erradas, outras mais qualificadas, e são obrigadas a organizar por si mesmas tudo isso. É um recurso de sobrevivência, mas também uma indicação de que algum circuito intelectual (crítico) foi ativado.
Trata-se, em suma, de uma tendência imposta pelos fatos e estruturas da vida: na sociedade “líquida” de massas, é muito difícil que o “padrão Globo” ou os editoriais do Jornal Nacional se imponham sobre todos, como se todos fossem ovelhas desprotegidas. Estamos, a rigor, cada vez mais “fora de controle”. Moretzsohn acredita que as coisas não são assim. Não aceita que os cidadãos estejam se tornando mais críticos ou mais capacitados para processar informações, e caso estejam, isso não se deveria à forma da sociedade (em rede, digamos). Para ela, a forma em rede reproduz as mesmas estruturas de poder típicas de capitalismo, e portanto as informações chegam às pessoas com máculas e pecados de origem, já que são produzidas pelas agências principais, a grande mídia oligopolizada. Fechar-se-ia assim um círculo.
Divergências úteis
É por isso que Moretzsohn não aceita a possibilidade de que exista, no interior do sistema midiático brasileiro (que tende de fato ao monolitismo), uma profusão de mídias alternativas que “mantêm ativo o antagonismo dos discursos, ajudando assim a que se dissolvam consensos fáceis e opiniões cristalizadas”, como escrevi no livro. Essas mídias disputam espaço dentro do sistema, como uma espécie de contratendência. Ela também rejeita a constatação que faço de que “a opinião dominante torna-se cada vez menos a que vem ‘de cima para baixo’ ou a que é veiculada pela grande mídia”, embora as grandes empresas de comunicação “ainda hegemonizem o campo da comunicação informativa e do entretenimento”. E, por último, não aceita a hipótese de que o contexto de “atuação oligopólica da mídia” possa produzir redução dos espaços de atuação da “mídia alternativa” e fazer, ao mesmo tempo, com que os grandes veículos de mídia sejam “obrigados a dividir essa função com as redes digitais”. Para ela, ou é uma coisa, ou outra. Os polos de uma contradição não poderiam se articular nem se retroalimentar.
Em suma, onde eu vejo diversidade dialética numa unidade – ou seja, um todo composto por partes que se contradizem de fato, se negam e se afirmam reciprocamente – ela vê um todo harmonioso e funcional, sem ruído ou atrito. Tentei privilegiar contradições reais, fluxos e lutas de opostos; Moretzshon enfatizou o predomínio sufocante do capital, vendo tudo o que disso destoa como coisas marginais, pouco relevantes e não antagônicas. Para ela, o sistema se impõe; para mim, o sistema é desafiado.
Reitero que me senti privilegiado por ter podido contar com a leitura de Sylvia Moretzsohn. Nossas divergências, que existem, são mais analíticas e de ênfase do que políticas. Se bem encaminhadas, produzirão convergências importantes. Ao menos por isso, merecem ser aprofundadas e mantidas em evidência.
Leia também
Uma crítica à discussão política da mídia – Sylvia Debossan Moretzsohn
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Marco Aurélio Nogueira é cientista social, professor titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor, entre outros, de As ruas e a democracia – Ensaios sobre o Brasil contemporâneo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2013), Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004)