A consciência do momento histórico é um privilégio que junta, na análise da retomada do carnaval de rua do Rio de Janeiro, a frieza das estatísticas e a alegria dionisíaca de uma multidão que, assim como um século atrás, causava temor às autoridades. Lá no século 19, quando o carnaval eram dois, mas considerado privilégio de um grupo só, havia as grandes sociedades e os bailes de máscara a delimitar o espaço em que as autoridades podiam reprimir as manifestações populares e deixar aos civilizados a oportunidade de mostrar ao Brasil com quantos confetes se fazia uma batalha.
Tudo isso é uma história conhecida, que se atualiza naquele pedaço de terra margeado pelo mar onde os canteiros dos apartamentos de luxo e os muros da cidade clamam pelas boas maneiras, pelos bons costumes e por um fiscal da prefeitura de prontidão para autuar aqueles que estiverem a pôr para fora o que ingeriram em alegria para os ambulantes. Mas hoje o carnaval é um só, sem distinção de classes, ainda que boa parte de sua sociologia veja nesse tipo de comentário uma ingênua exaltação da igualdade social e racial. Sendo um fenômeno complexo, o carnaval carioca escapa aos dogmatismos e aos maniqueísmos que na academia, na opinião pública e nos fóruns de internet simplificam-lhe o debate.
Os mijões e os beberrões, versão moderna dos perseguidos do entrudo, são em boa medida os jovens bronzeados da Zona Sul, contra os quais seus condôminos, tão pretensamente civilizados quanto os do século passado, são capazes de jogar até bomba, como aconteceu dois anos atrás no bairro do Leblon, um dos epicentros da movimentação das placas tectônicas que se acomodam numa multidão que se espraia pela orla pelas ruas capilares. Quem busca civilidade, ou clama por ela, divide o mesmo bairro, a mesma moradia, a mesma condição social de quem reinventa o carnaval de rua.
Essa geração inverteu a mão da direção das estradas que conduzem ao reinado de Momo: pôs nas ruas, no último carnaval, mais de cinco milhões de pessoas, dos quais um milhão e duzentos mil turistas, segundo estatísticas oficiais. Bate em números o carnaval de Salvador, que era considerado, faz pouquíssimo tempo, o “verdadeiro carnaval popular”, mesmo que o critério para o que seja popular encapsule por entre pobres carregadores de cordas uma multidão com seus caríssimos abadás. De acordo com as estatísticas divulgadas por órgãos municipais, um milhão e setecentas mil pessoas participaram do carnaval de Salvador.
Linguagem do espetáculo
O som que vem das ruas restaura a singularidade e a riqueza estética que fez do Rio de Janeiro a cidade por excelência do carnaval, deslocando, depois de séculos, o eixo carnavalesco do continente europeu para o Novo Mundo. Nenhuma outra cidade junta, como atrações principais do carnaval, a estética da competição-espetáculo e a da espontaneidade. É assim desde dois séculos: as grandes sociedades e os ranchos, regidos pela competição entre si, mesmerizavam o público, faziam-no impactar-se pelo deslumbramento, pela emoção, o que só era possível pelo senso de organização com que essas essa agremiações eram comandadas no desfile. Já as mais variadas formas de brincar o carnaval nas ruas eram o outro lado da moeda. Os bailes, embora restritos à elite, também estavam na lógica do espontâneo, posto que as altas classes queriam brincar o carnaval.
Com o declínio do carnaval de rua e a ascensão das escolas de samba nos anos 1960, a lógica da competição-espetáculo passou paulatinamente a predominar até desaguar na grandiloquente definição de “O maior espetáculo da terra” para o que se vê no Sambódromo.
Os anos 1960 não foram revolucionários apenas na política, na música e nos costumes. Imprimiram mudanças radicais no carnaval brasileiro: transformaram em cinzas o carnaval das marchinhas e dos bondes, deram impulso às escolas de samba para que se juntassem ao samba como representação nacional. E, mais uma vez, lado a lado dessa “revolução carnavalesca” estava uma nova etapa do desenvolvimento das comunicações no Brasil.
As emissoras de rádio – que estavam se adaptando a uma nova realidade, depois do surgimento da televisão – passaram a abriram o microfone para as escolas. Com o advento do videotape, no início dos anos 1960, as emissoras de TV passaram a transmitir flashes dos desfiles das escolas de samba, ainda na Avenida Rio Branco. Pelo que se tem notícia, a TV Continental fez a primeira transmissão em flashes, em 1960. O surgimento da TV em cores, em 1972, fez com que as emissoras de TV dessem mais espaço ao desfile: num primeiro momento, aumentaram a duração dos flashes; depois, passaram a transmiti-lo integralmente.
Há consenso entre os estudiosos da comunicação acerca do papel primordial da televisão no processo que galgou as escolas de samba à posição que ocupam hoje. A transformação de uma manifestação artística num espetáculo não poderia ocorrer sem a transmissão de imagem. Tampouco se daria numa imagem em preto e branco.
A associação entre escolas de samba e televisão ensejou um discurso ideológico. Transmitido em rede nacional, o desfile tornou-se a metonímia do Brasil. Tornado espetáculo, institucionalizado, o desfile, agora, prescinde da mediação da imprensa. Precisa é de um tipo de divulgação: a linguagem do espetáculo. Assim, tudo o que não seja para exaltar, valorizar, glorificar, sempre numa retórica grandiloquente e majestática, é visto como uma ameaça ao que nos faz conhecidos, um complô – sabe-se lá por quê – destinado a usurpar do povo brasileiro sua principal festa.
Fantasia própria
As grandes empresas de comunicação, que cada vez dedicam menos espaço ao carnaval, desviaram-lhe a cobertura. Já não interessa o velho sambista, o enredo da escola, o universo social e cultural das agremiações. O foco está nas celebridades, nas famigeradas rainhas e madrinhas de bateria, nos carnavalescos, nos destaques que desfilam luxuosos ou despidos. Não é um juízo de valor: é um juízo de fato.
Os jornais impressos vêm diminuindo os textos nas páginas de cobertura de carnaval, que se torna mais fotogênica. Com isso, perde-se a massa crítica tão necessária a este momento de transformação do carnaval. Uma das exceções este ano foi a análise de Alexandre Medeiros em O Dia, na Quarta-Feira de Cinzas, que ocupou metade de página, em três colunas, de cima a baixo.
Agora, a par disso, a brincadeira dos blocos, gratuita, sem as amarras cada vez mais rígidas das escolas de samba, faz-lhe um divertido e necessário contraponto não só maneira de brincar, mas também na de cobrir. Uma atenta observação do autor deste texto sobre jornais e televisões apontou que o espaço dedicado aos blocos é apenas um pouco menor do que a cobertura do Sambódromo.
O espetáculo tem regras: é uma competição com quesitos, julgadores, detalhes técnicos, tempo de desfile, contingências que podem desequilibrar a balança das favoritas.
A espontaneidade é desprovida de qualquer baliza competitiva. Nela, impera o desregramento das ruas, em que o indivíduo brinca à sua maneira, e constrói sua própria fantasia sem que haja um jurado para tirar-lhe ponto – ou tapar os olhos para a falta dela, como fez uma julgadora de Alegorias e Adereços ao sapecar nota 10 para a capenga Vila Isabel.
Duas opções
Há vinte e um anos, em edição datada de 24 de fevereiro de 1993, Veja chegou às bancas com a capa intitulada “A Bahia ganhou”. Era a exaltação da vitória da baianidade, que ficava mais explícita nos meses de samba, suor e cerveja, contra o ferido orgulho carioca de produzir “o maior espetáculo da Terra”. Naquele ano, a antiga TV Manchete, que se notabilizara pela transmissão do carnaval carioca, transmitiria pela primeira vez, sem interrupção, a folia baiana, em vez dos desfiles do Sambódromo. Confrontado com a distância do tempo, o teor da matéria, assinada pelo saudoso Geraldo Mayrink e por João Gabriel de Lima, dá a dimensão da mudança em curso nas ruas do Rio de Janeiro:
“(…) O Globo deu uma página inteira de depoimento de celebridades iradas contra a audácia nordestina de roubar da Cidade Maravilhosa o título de dona do maior espetáculo da Terra. ‘As pessoas na Bahia participam espremidas’, acusou o secretário de Turismo, José Eduardo Guinle. ‘É uma piada comparar o carnaval do Rio com o de qualquer outro’, disse Ricardo Amaral, promoter de um camarote na Marquês de Sapucaí. ‘O carnaval da Bahia é o precursor do arrastão’, denunciou a socialite Tânia Caldas. Até a venerável Dona Zica, primeira-dama mangueirense, convidada a opinar, opinou: ‘Não entendo o carnaval da Bahia. As pessoas só querem saber de pular sem parar’.”
Que diriam hoje José Eduardo Guinle e Tânia Caldas da horda que, barulhenta e alegre, espreme-se nas ruas do Rio de Janeiro?
Nos grandes centros de excelência de carnaval do Brasil além do Rio – Salvador, Olinda, Recife –, opera uma das duas lógicas. Em Olinda e Recife, a do espontâneo, com os grupos os foliões nas ruas dançando ao som de frevo, ciranda, maracatu. Salvador pode parecer um caso de hibridismo, com os nomes do show business a encimar os trios elétricos enquanto lá embaixo a turma do abadá se diverte. Mas nesse hibridismo baiano a preponderância é do espontâneo, com o divertimento descompromissado dos foliões.
São Paulo, antes restrito à competição-espetáculo, com o desfile das escolas de samba, vê o movimento dos blocos pegar a ponte aérea. Só neste ano foram mais de duzentos, alguns dos quais importados do Rio, como o Sargento Pimenta, que toca canções dos Beatles em ritmo carnavalesco. Ainda é algo embrionário, sem a dimensão do Rio, mas o crescimento é significativo.
Só o Rio, com as escolas de samba e os blocos, oferece em seu cardápio carnavalesco as duas opções.
Um executivo resumiu com precisão o sentimento de quem está a fazer história e vê-la à nossa frente: “Para minha geração, passar o carnaval no Rio era algo totalmente sem graça. O bom era viajar. Hoje, não. O bom é passar o carnaval aqui”.
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Bruno Filippo é jornalista, sociólogo, professor da Universidade Estácio de Sá e das Faculdades Integradas Hélio Alonso