Na cena final de O Rinoceronte, Bérenger, rodeado e ameaçado por concidadãos transformados em paquidermes, jura resistir. Embora sua luta pareça cada vez mais desesperada, ele não vê alternativa senão a de apegar-se a sua determinação de permanecer humano, custe o que custar. Quando a cortina desce, está se preparando para um enfrentamento que percebe não poder mais adiar.
A peça genial de Ionesco e a denúncia ácida que faz do embrutecimento humano permanecem desconfortavelmente atuais, passado já mais de meio século de suas primeiras apresentações (a peça é de 1959). A imagem central e a dinâmica que estruturam o drama parecem antecipar algumas das principais críticas contemporâneas aos modos de convívio em nosso tempo hipertecnológico, hipermidiatizado e hiperconsumista. Ao longo da ação, os habitantes da cidade vão, pouco a pouco, desenvolvendo características que surgem como o avesso mesmo daquilo que nos faz humanos: uma couraça espessa os torna impermeáveis e insensíveis àquilo e àqueles que estão ao redor; uma miopia crônica os impede de ver amplamente e com clareza; uma intolerância absoluta os faz detestar a diferença; uma ferocidade absoluta os obstina a destruir os que não são de sua espécie. A alegoria, cuja mordacidade de origem tinha por objeto a ascensão dos totalitarismos do século 20, mantém sua força nos tempos dessa pós-modernidade que se quer fundamentalmente libertária e plural.
Na peça, de modo particularmente significativo, à medida que os rinocerontes se tornam maioria, escasseiam os diálogos e os espaços para o diálogo – não é mais possível sentar-se à mesa do café para trocar ideias – e o palco é tomado por uma ação frenética, desprovida de palavras, bruta. A praça pública, antes cheia de vida e animada pelas discussões entre o pedante Jean e o simplório Bérenger, se torna um deserto, um lugar proibido para aqueles que não querem se converter à forma dominante de paquiderme.
Esse tema da conversão compulsória, e das dificuldades em resistir-lhe, talvez seja uma das razões importantes para a atualidade do texto de Ionesco. Como já foi observado, uma das características das sociedades pós-modernas é a de que as relações, mesmo no espaço público, passam a ser fundadas na semelhança entre aqueles que se relacionam. A lógica que preside as trocas no Facebook e outras redes – o usuário aceita ou descarta amigos segundo sua conveniência individual, segundo se identifiquem ou não com aquilo que pensa – vai aos poucos se tornando, para muitos estudiosos, a matriz das relações interpessoais como um todo. A norma é evitar o desconforto da diferença e da contradição, não a de conviver com ele.
Essa tendência reverte os pressupostos que, até muito recentemente, eram hegemônicos para as trocas sociais. Não há muito, a expectativa de comunhão ou identidade de sentimentos recaía principalmente sobre o espaço privado, da família ou do círculo de amigos mais próximos. Entre esses, certa homogeneidade era esperada. Para o espaço público, a expectativa era diversa. Na rua, no mundo lá fora, esperava-se encontrar pessoas que tinham valores, opiniões e ideias possivelmente muito diferentes daquelas que dominavam o ambiente doméstico. Por isso, cada um deveria ter a habilidade de transitar harmoniosamente na ágora povoada por uma multiplicidade de visões de mundo. A civilidade era justamente a virtude de conviver com essas diferenças. Ela se fundava na crença de que a igualdade radical da condição de cidadão deveria prevalecer, no espaço público, sobre as singularidades do sujeito individual.
Figura secundária
As críticas ao nosso tempo sugerem que essa virtude ancestral vai deixando de fazer sentido à medida que as sociedades celebram e fomentam o individualismo narcísico. Imersas em um modelo econômico cuja obsessão é a de agradar ao consumidor, de fazer com que todos os aparatos e serviços se ajustem ao máximo aos desejos e preferências do sujeito que deles se utiliza, tais sociedades parecem implicitamente propor que aquilo (ou aqueles) que não forem imediatamente compatíveis com as necessidades do momento devem ser descartados.
Além disso, para que algo (ou alguém) seja visto como inadequado e merecedor de descarte basta demonstrar um grau mínimo de incompatibilidade ou dificuldade de manipulação. Uma expectativa não atendida é o suficiente para que se elimine a fonte da frustração. No campo do consumo isso se traduz na substituição sistemática de produtos praticamente novos, cujos defeitos eventuais, ainda que mínimos, não valem o esforço do conserto.
No campo das relações humanas, isso toma corpo na rejeição absoluta de quem adota outras crenças. Como frequentemente se vê dos comentários enfurecidos com que internautas reagem incessantemente às manchetes do dia, é o todo da pessoa em foco que se vê rejeitado, não apenas suas ideias. Nesse contexto, o outro é frequentemente reduzido à categoria totalizante e depreciativa de “gente que pensa assim”, numa redução que atrela o dever de respeito ao outro à convergência ou não de suas ideias com aquelas de quem o julga.
Quando se chega a esse ponto, é preciso muito pouco para que o discurso sobre “gente que pensa assim” se deteriore na crença de que os que defendem tais ideias não são exatamente como nós e, por isso, não são dignos do mesmo respeito e direitos que se atribuem aos que comungam da mesma opinião. Mais um passo e se dirá que a violência contra eles e contra as instituições e objetos que os representam ou simbolizam é, em certa medida, merecida e justificada.
Os episódios recentes envolvendo a atriz Letícia Spiller e a deputada Manuela D’Ávila, graves em si, tornam-se ainda mais preocupantes quando lidos como índices dessa propensão à intolerância que vai se enraizando em nossas sociedades. Os alvos podem ser da esquerda ou direita política, religiosos de diferentes denominações ou representantes de classe, famosos ou pessoas comuns em uma obsessão pela homogeneidade que, de resto, não impede que mais à frente se invertam os papéis nessa dialética da exclusão. É o direito democrático à alteridade que vai sendo corroído.
A desqualificação automática da totalidade do outro por suas visões ou modos de vida e a truculência verbal ou física que ela habitualmente produz são marcas daquela exigência de conversão às crenças hegemônicas que caracteriza a rinoceritis, doença que infectou a cidade imaginária da peça de Ionesco. Ela gera uma enorme impaciência ou cansaço em trocar ideias e naturaliza o insulto como forma de reação à expressão de desacordo.
Combinando uma certeza enfarada de que “já sei o que você vai dizer” com a convicção de que a opinião ou sentimento discordante vem da incapacidade de o outro entender aquilo que vivo e sinto, ela faz com que cada um vá se encerrando mais no – cada vez mais reduzido – círculo ou couraça daqueles que sentem e pensam de maneira idêntica. Excluída a diferença, o sujeito se confirma satisfeito no ambiente seguro das opiniões homogêneas reforçando, no processo, a ideia de que são muito obtusos ou mal-intencionados os que estão do lado de fora.
No campo das relações políticas, isso tem gerado não apenas uma falta absoluta de diálogo entre propostas diferentes, mas, de maneira ainda mais grave, uma redução drástica na própria capacidade de formulação de novas propostas. Apaixonado pelas próprias certezas e surdo às críticas, o pensamento político se torna estéril. A ação política, por sua vez, passa a ter por objetivo justificar a exclusão dos adversários, não construir a convergência, e as ações de governo, modos de premiar a homogeneidade de pensamento, não de proteger a diversidade de leituras.
Ocorre a inversão do ditado que diz ser a guerra a política por outros meios: é a política que se torna guerra, um embate que deverá necessariamente deixar em campos opostos vencedores e vencidos, sem nenhuma possibilidade de composição ou entendimento, até que estes últimos se reagrupem e recomecem a batalha para retomar os espólios com que os primeiros se fartaram. Nessa alternância em que soluções consensuais e avanço conjunto são impossibilidades, a república, a coisa pública, como em toda guerra, fica à míngua, figura secundária no campo de interesse dos combatentes.
Tropel dos paquidermes
Mas a rinoceritis ameaça toda a sociedade, não só aqueles que as governam. Sociedades que sistematicamente acolhem, em suas práticas quotidianas, a intolerância como matriz para as relações sociais podem transformar em esqueleto sem vida as estruturas políticas que sustentam a vida democrática. O miúdo do dia a dia não está absolutamente livre da possibilidade de triunfo da truculência, da arbitrariedade e da arrogância.
Em O Rinoceronte, Botard faz pouco da preocupação de Bérenger quanto ao futuro da cidade. Ele afirma, tranquilo, que as pessoas ali são inteligentes, íntegras e sofisticadas demais para que a epidemia se espalhe. Em pouco tempo, o tropel dos paquidermes domina o palco. A peça de Ionesco merece ser relida.
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José Garcez Ghirardi é advogado, professor da Direito da FGV/SP