“O verdadeiro problema é que o jornalismo se converteu em tão somente um espelho de nosso tempo, abdicando de qualquer função social, para limitar-se a ser um abastecedor da informação como uma mercadoria” (Roberto Sávio em “O jornalismo de hoje: uma escolha entre o mercado e as pessoas”, no site Carta Maior)
Como se fazem sabonetes? Desde sempre é diferente de como se faz uma obra de arte, uma música e uma poesia. No campo humano não se faz profissionais, formam-se, ou melhor, ajuda-se a formá-los. Por isso, educar exige o transito em campos como ética, estética, teoria e espaço determinado, marcando para sempre as pessoas, pois é disciplina, oportunidade e circunstância. Para os gregos, há um tempo para a formação que eles chamavam de escola. Assim, objetiva-se aqui refletir a polêmica em torno das novas diretrizes para formação dos cursos de jornalismo e da atividade do jornalistas. A questão foi publicada na revista Cult desse mês e neste Observatório, ampliando o debate.
Ora, o que está em jogo são justamente as condições de formação de uma classe profissional que traz para si o brilho e arrogância do liberalismo moderno (a possibilidade essencial de manutenção da democracia), a diatribe à intelectualidade (a dicotomia entre teoria e prática) e o papel social da comunicação (relação entre mercado, público e legislação). Em tempo, os jornalistas se formam e se perdem como “cães” em sua jornada na sociedade atual em que a necessidade e a contingência se alternam, em um tempo em que o valor primordial é a informação, quem tem informação, tem poder. A partir disso, entende-se que o jornalista deva ter uma formação crítica, ética e técnico-teórica, quem sabe uma formação intelectual sólida que o leve a decidir os rumos de sua profissão, tanto subjetivo como objetivamente, através de uma ação social válida e uma militância política contundente com os seus desafios cotidianos.
O sistema liberal, filho da modernidade, concebeu à ideia de democracia sob o valor de liberdade política e de expressão. O amadurecimento dessa ideia possibilitou a concretização da categoria profissional do jornalista como essencial para manutenção dos sistemas democráticos de direito. Hipoteticamente, o direito universal (política e expressão) não se diferenciava, pois se tornara uma amálgama até surgir a liberdade de imprensa que por sua vez, torna-se um derivativo político da liberdade de expressão e liberdade de mercado. Na contemporaneidade isso se radicalizou, ou seja, parece que a liberdade de imprensa se liga a uma ideia mercadológica em que se destacam a manutenção da livre iniciativa da mão invisível do mercado e o direito mercantil das empresas, em detrimento da função social de manutenção dos direitos democráticos. Perversamente confunde-se a liberdade de expressão com liberdade de imprensa, onde opinião pública é opinião publicada e o jornalismo um mero bibelô no joguete de poderes dos conglomerados de comunicação com suas ações estratégicas e planos de negócio, impedindo qualquer movimento em prol da democracia.
Uma complexa relação de poderes
Pois bem, ser jornalista significa viver em um universo em que o funcionamento da atividade depende de um estado Democrático de Direito e da plenitude de liberdades. Essa imagem é transmitida a todo instante como uma lenda que se separa da verdade factual. A democracia é traída pelas instituições que a mantêm, pela força dos mercados econômicos, pelas empresas e assim também pelo jornalismo que desde sempre compete com outras categorias intelectuais dentro dos sistemas democráticos.
As demandas e contradições dos sujeitos que praticam o jornalismo se ligam à história política do Brasil no século 20, pois mostra como essa atividade sobreviveu como uma sombra na dialética da frágil democracia deste país. O brilho e arrogância do liberalismo moderno nunca deu aos profissionais do jornalismo um consenso. Assim, o jornalista com sua técnica arrojada minou e/ou apoiou as transformações sociais no Brasil, fora usado para impedir ou provocar progressos sociais e democratizar a justiça, e/ou fragilizar o direito à comunicação, acumular fortuna e assassinar reputações. Essa relação fez com que o jornalista estivesse entre as profissões mais prestigiosas e perigosas do momento, ao mesmo tempo em que se tornou algo odioso, dado que a atividade parece sem regra, em um universo desregulamentado dos meios de comunicação, sob valores frágeis e mutáveis já na base, na academia.
O sujeito jornalista, em suas necessidades, fica sem escolha, é incapaz de exercer suas liberdades, dentro de uma posição ética autônoma, dado que as regras do ser jornalista não estão apenas nas suas escolhas particulares e de grupo, mas na complexa relação de poderes que rege a sua atividade. Ou seja, não é o bastante ter uma formação sólida e coerente, mesmo que seja essencial, mas que haja compromisso social com os valores democráticos.
A diatribe à intelectualidade
Para formação do jornalista enquanto intelectual, sugiro a leitura de duas obras de Ciro Marcondes Filho, Ser Jornalista: ALíngua Como Barbárie e a Notícia Como Mercadoria e Ser jornalista: o desafio das tecnologias. E o fim das ilusões, ambos da Editora Paulus (2009). Marcondes Filho defende uma formação intelectual para os jornalistas. Nessa perspectiva, concorda-se com ele, pois trata-se de uma escolha política que se desdobra em um desafio educacional, pois no contexto brasileiro não há um clima sociocultural para formar intelectuais. As universidades parecem ilhas isoladas dos outros sistemas sociais e no mercado de trabalho o que se tem é um desrespeito para com a educação e um preconceito para com a crítica e a intelectualidade. Desse modo, surgem barreiras para formação intelectual e fissuras entre saber prático e saber teórico. Essas lacunas se ampliam de uma forma intencional, pois o sentido do jornalismo se subverte em interesse mercadológico, em produção de bens de consumo, em barganha de poder e em desinteresse social, político e democrático.
O mercado envia constantemente seu recado para as instituições de ensino, ele demanda o poder do capital, necessita de mão-de-obra especializada de acordo com seus interesses. Às favas a democracia, os saber universitário humanístico, crítico e político. Ou melhor, para que serve o curso universitário, se o jornalista pode ser feito em seis meses, como relatou o publicitário e apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, em 2009, na UNB. Mas a educação é um processo complexo e menos linear, cheio de camadas cada vez mais complicadas, pois exige tempo, vontade, contexto e possibilidades.
O processo de intelectualidade está ligada à educação (formal ou não), muito mais complicado que uma diatribe à formação jornalística. Ser um intelectual é ser honesto consigo e com a sociedade em que está engajado, superando os limites do maniqueísmo e alcançando um saber-fazer engajado. Por isso, ser intelectual não é cognição que leva a classificação de uma racionalidade instrumental, é uma posição política, capacidade de organizar as ideias e ações em prol de uma finalidade social e humanitária.
A formação do jornalista para a intelectualidade torna-se muito mais necessária no tempo presente, pois identifica-se com as demandas da atualidade, em que os horizontes do universo social como todo, aqui no Brasil e alhures, questiona os profissionais quanto a sua especialização, mas também cobra sua posição humanitária e política. Por isso, o desejo de uma formação para o compromisso social e autonomia ética vai contra a corrente das interpretações mercadológicas, mas atinge o fulcro dos problemas sociais. Para tanto, tal perspectiva leva a questionar a finalidade de um currículo em esvaziar as humanidades, isolando o jornalismo das outras ciências da comunicação, criando um vácuo teórico que pode esvaziar os campos de conhecimento e a militância política. Quais as consequências disso? A realidade jornalística, o tratamento dado ao jornalista, o agravamento do “faroeste caboclo” que vive o sistema midiático nacional, os abusos dos veículos de comunicação e a desumanização do processo comunicacional. Recentemente, a tecnologia criada pelo Los Angeles Times concebeu através de algoritmo, escrito pelo jornalista e programador Ken Schwencke, uma notícia sobre um tremor de terra. O que será do jornalista no futuro próximo?
Bem, o processo tecnológico é infinito, dado a possibilidade das inovações através da transformação técnica. Limitar-se a um jornalismo de dados em uma fórmula técnica, possibilitará a superação dos sujeitos sociais enquanto ser humano, ser de ética, agente político-cultural. Em detrimento a isso, tem-se o desafio do presente com a concentração dos meios de comunicação e a negação destes como direitos humanos.
O papel social da comunicação
Refletir sobre o jornalismo é destacar mais do que tudo o status social dessa atividade a posição do sujeito no contexto comunicacional. Por isso, mais do que qualquer coisa, o jornalismo não deve afastar-se das ciências da comunicação. Ao contrário, deve fortalecê-la. Compreender como funciona o sistema de comunicação é uma ação importantíssima para saber a real necessidade da profissão, seus desafios e limites. Porque o que se tem atualmente é a promiscua relação das estruturas da comunicação social, principalmente pelo desrespeito à Constituição Federal e regulamentação dos Artigos sobre Comunicação Social, a ausência da lei de imprensa, a desatualização da lei de Radiodifusão.
Os conglomerados, fruto de concessão pública, se comportam como donos do espectro eletrônico das telecomunicações, ajuntam-se em oligopólios, fitam com políticos e igrejas, engessam as iniciativas comunitárias e boicotam os processo de democratização dos sistemas, conferências e fóruns de direito à comunicação. O jornalismo não pode e nem deve ficar à margem. Como uma atividade social, seu papel é de comprometimento com o público, com os direitos humanos e a democracia plena. Todavia, como empregados, os jornalistas se tornam refém do patronato, sem seguridade econômica e iniciativa social.
No mais da vezes, observa-se um jornalismo tímido, manipulado e manipulador. Profissionais se comportando como marionetes, sem voz, sem vez, fazendo o desfavor à democracia, à liberdade de expressão e aos diretos humanos. Além disso, há profissionais sabedores de seu papel, aliados do patronato, fiéis aos empresários, e como voz do patrão, pensa como o patrão. O desfavor ao jornalismo é vergonhoso, deletério e comprometido com establishment, pois simula um discurso objetivo, neutro e imparcial para desinformar e manter a lacuna entre a realidade social e o lucro do mercado de bens simbólicos.
Por fim, para que serve o jornalismo? Quem sabe os discentes das escolas de Jornalismo e Comunicação Social poderão responder melhor que as instituições, quando o tempo chegar e cobrar deles como diabos hábeis.
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Moisés dos Santos Viana é jornalista