Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ‘hacker’ e o fantasma

O espião era um profissional da bisbilhotice. Sua matéria-prima eram cabeludíssimos segredos de Estado, intimidades abomináveis que proporcionavam chantagens, desígnios venais de comunistas macilentos. Como não há tensão que dure para sempre, a espionagem perdeu-se nas brumas da Guerra Fria. A auréola de mistério que a encimava teve um apagão quando a Cortina de Ferro foi carcomida e o Muro de Berlim se esboroou.

Bons tempos aqueles – tempos de thrillers escritos por Maniqueu em pessoa; de 007 com um topete postiço à la Eike Batista; do agente Tumão ensinando Tuminha que a democracia dá um dinheirão. Os russos tinham péssima pontaria e os mocinhos davam de lavada. Sem espiões a História ficou sem sentido. Mas em boa hora surgiram os hackers.

Não quaisquer hackers. Os que surrupiam senhas, inoculam vírus e afanam o cartão de crédito não têm o menor charme. Bons são aqueles que atazanam os poderosos. Ao contrário dos espiões de antanho e de Hollywood, os hackers cultivam o difuso ideal da transparência. Trabalham de graça e correm riscos reais. Não têm receitas para melhorar a sociedade. O que lhes interessa é a verdade.

Três deles saíram das sombras. Bradley Edward Manning, soldado americano hoje com 26 anos, era analista de informações no Iraque e no Afeganistão. Foi acusado de vazar cerca de 700 mil documentos secretos. Expulso do Exército, recebeu a pena de 35 anos de prisão. Um dia depois da condenação, contou que era transexual e queria iniciar um tratamento com hormônios. Pediu para ser chamada doravante de Chelsea Elizabeth.

O espião é espionado

Edward Snowden, com 30 anos e também americano, é um especialista em computadores – eufemismo para hacker – que trabalhou na CIA e foi funcionário terceirizado da Agência Nacional de Segurança, a NSA. Ele também divulgou milhares de papéis sigilosos. O governo americano o acusou de roubo e espionagem, cassou seu passaporte e saiu no seu encalço. Snowden se refugiou na Rússia.

As revelações que eles fizeram são de natureza diferente. As difundidas por Manning mostram o poder americano no seu esplendor: assassinatos de civis, ordens de execução, traição de aliados, corrupção de adversários. Um dos seus biógrafos especula que a Primavera Árabe não teria ocorrido se Manning não tivesse posto a nu a podridão dos títeres da Casa Branca na região. Snowden, por sua vez, evidenciou a intromissão americana em todas as formas de comunicação. Telefonemas e e-mails, Angela Merkel, Dilma Rousseff e congressistas americanos – nada e ninguém estão a salvo da espionagem americana.

Argumenta-se que as descobertas de Manning e Snowden apenas confirmam suspeitas estridentes. Ou será que Luciana Gimenez acha que o imperialismo americano é um conto de fadas? Mas mesmo com a ignorância tendo tantos adeptos, saber sempre foi superior a supor. A verdade tem a força do real, independe de quem a revela. Ela está nua na formidável estátua de Bernini porque não tem nada a esconder.

O terceiro hacker na ribalta é Julian Assange, um australiano de 42 anos. Ele criou e chefia o site WikiLeaks, que divulgou centenas de milhares dos segredos garimpados por Manning e muitos dos de Snowden. Ao contrário deles, Assange não tem jeito de nerd. Tem a aparência de um astro pop ultra-cool.

Agora dá para entrever algo do homem atrás da aparência. Não se lerá tão cedo na imprensa uma preciosidade do quilate da reportagem sobre Assange publicada no último número da London Review of Books. Seu autor, o jornalista e escritor escocês Andrew O’Hagan, foi contratado em 2011 para ser o ghost-writer da autobiografia do hacker. Receberia o combinado, escreveria o livro e se manteria calado. Assange ganhou US$ 2,5 milhões adiantados pela sua venda em 40 países.

Deu tudo errado. O’Hagan ficou meses com Assange e gravou milhares de horas de entrevistas. Quando o esboço do livro ficou pronto, o hacker passou a dizer que “toda autobiografia é prostituição” e se recusou a publicá-lo. Como já tinha embolsado o adiantamento, o rascunho foi publicado à sua revelia com o título de Julian Assange – A biografia não autorizada.

O que deu certo foi a reportagem de O’Hagan, na qual o espião é espionado por um fantasma. O nerd come com a mão, passa a maior parte do tempo acompanhando o que falam dele na internet, não entende nada de política (“não distinguiria o materialismo dialético de um saco de nozes”), padece de delírios persecutórios, é um narcisista que não termina o que se propõe porque não sai da frente do espelho. Como diz O’Hagan, Assange é mad, sad and bad. Mas ele não matou ninguém e espalhou a verdade. Já o boa praça Obama matou milhares, espiona milhões e mente sem parar.

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Mario Sergio Conti é jornalista