Com a exceção do deputado lobista Eduardo Cunha (PMDB-RJ), dos patéticos ex-comunistas de Roberto Freire (PPS-PE) e dos reaças sem-noção das Marchas da Família, que se manifestaram frontalmente contra, todo mundo está aplaudindo a aprovação do Marco Civil da Internet, na Câmara dos Deputados.
Até as empresas de telecomunicações, as principais derrotadas, arrumaram um jeito de aplaudir. O projeto ainda vai tramitar no Senado, mas tudo indica que passará também lá. O Brasil poderá celebrar definitivamente o fato de ter a legislação de internet mais avançada do mundo.
Vamos analisar melhor, então, o que aconteceu. Um projeto de regulação de mídia (a internet) foi relatado por um deputado de esquerda (Alessandro Molon, PT-RJ), apoiado pelo governo, debatido exaustivamente na Câmara Federal, combatido pelas Teles e parlamentares descontentes, negociado, negociado, negociado, alterado em alguns aspectos, finalmente votado e aprovado em votação simbólica, com voto contrário apenas do PPS.
Mais importante que isso: tudo nasceu da sociedade. “O Marco Civil da Internet foi um projeto construído colaborativamente após a criação de uma plataforma na web, criada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e o Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV/RJ, na qual cidadãos poderiam fazer comentários sobre o texto do projeto”, diz Murilo Roncolato, no blog Link. ”O processo se estendeu de novembro de 2009 a junho de 2010 e acrescentou ao texto inicial mais de 2 mil contribuições.”
Muito bem: o mundo acabou? A democracia ruiu? O país está ameaçado pelo fantasma da censura ou de qualquer veto à liberdade de expressão? Algum blog, site ou portal de internet foi impedido de publicar o que queria, ou obrigado a publicar o que não queria? O Brasil não segue no gozo das mais amplas e plenas liberdades públicas?
Ora, se o Marco Civil da Internet não afetou em nada a democracia e pode ser aplaudido pela ampla maioria da sociedade, por que raios a regulação de outros setores da mídia – a TV, o rádio e a imprensa – deve ser um fantasma, assustando o país?
Conversa fiada
Não será este um bom momento para refletir sobre o assunto? Não será hora de considerar que, da mesma forma como as Teles tentaram enrolar a cidadania, convencendo-a de que seria bom para ela pagar mais pela internet de péssima qualidade que oferecem, a grande mídia comercial está fazendo a mesma coisa? Também ela não está enrolando as pessoas, fazendo alarde com o risco de uma intenção de censura que nunca existiu, para defender os seus interesses corporativos?
Vamos convir que a legislação de rádio e TV aberta existente é o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Um instrumento totalmente superado, anterior aos satélites de comunicação, à TV colorida, à TV a cabo, à internet, ao sistema digital de transmissão, a tudo que compõe o cenário da moderna radiodifusão. Uma lei que não contribui em nada para exigir padrões decentes de qualidade na programação das emissoras, onde se encontra toda sorte de baixarias e o nível médio das produções é rasteiro.
Vamos convir que a Lei de Imprensa, promulgada em 1967, foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, em nome da remoção do “entulho autoritário” remanescente da ditadura, mas levou junto com ela algumas garantias dos indivíduos contra eventuais abusos do jornalismo. Por exemplo, o Direito de Resposta, que obriga os veículos de imprensa a concederem espaço gratuito para quem se sentir ofendido por matéria publicada. Esse direito foi restaurado em setembro de 2013 pelo Senado, mas ainda não foi votado pela Câmara Federal e não está em vigor.
Vamos convir, por outro lado, que a regulação ampla do setor de TV por assinatura e TV conectada (online, via internet), duramente conquistada com a Lei da Comunicação Audiovisual de Acesso Condicionado, introduziu as cotas de programação nacional nos canais pagos e está promovendo uma revolução no setor audiovisual brasileiro. Explodiu a procura por filmes e seriados nacionais, e nunca os produtores independentes tiveram tanto trabalho. Nunca o Brasil teve a chance de agora para implementar uma verdadeira indústria de cinema e TV.
As tentativas de renovar a regulamentação de TV, rádio e imprensa são bem antigas. Começaram nos anos 1980, mas sempre sofreram a obstrução pertinaz do “quarto poder”, sempre com o argumento falacioso de que representa “censura”. Como a mídia tem força para coagir os poderes formalmente constituídos da República, os sucessivos governantes e a ampla maioria dos parlamentares abstiveram-se de tocar no assunto.
Apenas no Governo Lula houve algum avanço, com a realização da primeira (e única) Conferência Nacional de Comunicação. Mas o anteprojeto de regulação da mídia resultante dela, que foi coordenado pelo então ministro Franklin Martins, jamais foi dado a público. Dorme em alguma gaveta da Presidenta Dilma Rousseff.
Descrentes de que a iniciativa de regular a mídia parta do Executivo ou do Legislativo, os setores que trabalham pela democratização da mídia decidiram seguir outro caminho. Optaram pelo método que levou à Lei da Ficha Limpa, outro instrumento que o Congresso não tinha interesse de aprovar: o projeto de iniciativa popular.
Está nas ruas a campanha Para Expressar a Liberdade, que coleta assinaturas para o anteprojeto da Lei de Comunicação Social Eletrônica. Ele precisa de 1,4 milhão de apoiadores para ser aceito no Congresso, tramitar em regime de urgência e descer pela goela dos parlamentares – já que poucos serão loucos de votar contra um projeto apoiado por tanta gente.
Que tal estudar esse assunto com serenidade, sem entrar na conversa fiada da “censura”, e contribuir para que a boa regulação de internet conseguida agora se estenda a toda a mídia brasileira, em todos os seus setores, formatos e veículos?
Bem geral
O Brasil também quer a neutralidade de suas redes de televisão. Quer que parem de atuar como um partido político eletrônico, fazendo coro com o partido impresso dos jornais e revistas, para defender um ideário específico de gestão do país, que isola e desconsidera todos os outros, quando não os criminaliza.
O Brasil também quer avançar no Rádio, na TV e na Imprensa o tanto que conseguiu avançar na Internet. Para o bem de todos, não apenas de uma dúzia de empresários, protegidos pela força de um enorme oligopólio de poder e pressão.
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Gabriel Priolli é jornalista, diretor de televisão e educador