Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A batalha do asterisco

Pedro Mexia é um homem marcado no jornal onde escreve. Não interessa que assine uma coluna semanal fixa, dessas com direito a foto de meio corpo centralizada no terço superior da página, ou que seu nome apareça com frequência nas resenhas e críticas do caderno de cultura. Não adianta: por onde quer que leve sua pena nos suplementos do semanário português Expresso, é seguido por uma nota de rodapé que o assombra e avisa o leitor: “Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia.”

“No princípio, a nota de rodapé servia para justificar minha objecção de consciência contra o Acordo Ortográfico, mas depois nunca mais caiu. Achei que a certa altura as pessoas já sabiam e ela era dispensável, mas lá continua”, disse-me Mexia numa tarde de dezembro, enquanto abocanhava um sanduíche de pão preto em um café atrás do Palácio Galveias, em Lisboa, onde pombas e pavões disputam comida pelos jardins. Os olhos azuis, o cabelo loiro já ralo, que lhe confere uma testa avantajada, e um cavanhaque claro com falhas transmitem ao jornalista e poeta de 41 anos uma fisionomia que um bom lombrosiano chamaria de inocente e pacata, jamais belicosa.

Como um guerreiro, contudo, num artigo publicado em 14 de janeiro de 2012, Mexia fustigou o aviso imposto pelo jornal em que trabalha e que lhe faz companhia logo abaixo de seu e-mail. “Eu agradeço que o Expressome permita a objecção de consciência”, começa em tom cordato, para a seguir, num momento shakespeariano, bradar en gardecontra o lembrete que o persegue: “Suspeito que esta fórmula foi inventada por alguém que pretende colar aos dissidentes o vocábulo ‘antiga’, como se nós escrevêssemos em galaico-português. Como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto ‘antiga’: antiquada, decrépita, morta.”

Além de marcar uma posição intelectual, o objetivo era chutar aquela advertência editorial para fora da página. Na semana seguinte, como em todas desde então, ela retornaria, perene, não apenas como exemplo de rigidez do padrão editorial, mas como estigma de uma batalha maior.

O caso não é único nem Mexia está isolado: pela imprensa portuguesa pululam, ao pé das páginas, avisos asteriscados, alertas em negrito, destaques em itálico ou meras notas sem qualquer charme gráfico. Todos sinalizam a mesma postura: o repúdio ao Acordo Ortográfico, ratificado pelo Parlamento luso em 2008 e posto em vigor em 2010. A ideia central do acordo, assinado pela comunidade lusófona na distante década de 90, era promover a unificação das grafias da língua portuguesa, encampando as teses de linguistas mais libertários de que a fonética deveria servir de guia acima do critério etimológico. Na prática, o que aconteceu foi que o português se abrasileirou pela força do escore populacional – 200 milhões de “brazucas” contra 11 milhões de “portugas”. Angola e Moçambique argumentam que o acordo fere o interesse nacional e não o ratificaram. Macau nem sequer entrou na conversa.

Na mudança mais traumática para os fundadores do império da lusofonia, as palavras com consoantes mudas na fala, comuns do lado de lá do Atlântico, foram friamente exterminadas: “objecção” virou “objeção”; “facto” acabou como “fato” e daí por diante. No Brasil, onde quer que exista um encontro consonantal vivo e sonoro, como em “decepção”, a consoante anterior permaneceu intacta na escrita. “O que veio para promover a unificação acabou por permitir duplas grafias baseadas em tradições locais”, lamenta Mexia.

Honra do convento

Do lado da ex-colônia, jornais, revistas e editoras se empenharam rapidamente em ceifar os acentos diferenciais e celebrar o que parecia ser o epitáfio das perguntas sem respostas das palavras hifenizadas, apenas para verem a implementação do acordo ser adiada no final de 2012. Na antiga metrópole foi o início de uma batalha: editoras ignoraram a reforma, até para não dar vantagem às competidoras brasileiras. As publicações precisaram decidir de que lado estavam. O jornal Público, o de maior prestígio entre os diários, seguiu com as normas estabelecidas pelo acordo de 1945. O Expresso, assim como o líder em tiragem Correio da Manhã, acabou por adotar a reforma, mas, como outros periódicos, os dois deram um jeitinho de adaptar as outrora inflexíveis normas de redação para conservar os colunistas rebeldes. Uma edição-padrão do semanário conta com 26 colunistas. Quatro se recusaram a adotar o acordo – em todos, vem cravada a observação.

A bancada antiacordista sabe que é um braço de ferro desigual. De um lado está o governo, capaz de impor nas escolas a obrigatoriedade das novas regras ortográficas e, mais importante, detentor do monopólio legítimo do concurso público. Do outro lado, um punhado de publicações e indivíduos que têm a palavra como ofício. Entre os dois, um grande número de pessoas indiferentes – não se ouvem gritos de “morte ao acordo” pelas ruas, tampouco aprovações eufóricas. Há, no máximo, uma iniciativa de cidadãos, encampada pelo jornalista, que tenta forçar nova votação do tema no Parlamento, mas que ainda não atingiu o número necessário de assinaturas. E mesmo se atingisse dificilmente teria maioria entre os deputados.

Mexia acha que “o futuro é negro”, que o máximo que se pode conseguir é devolver o acento diferencial roubado do verbo “parar” na terceira pessoa do singular, em algum remendo da reforma, “para salvar a honra do convento”. Depois de desfilar seu vasto arsenal de críticas, ele admite ser tarde para se rasgar o acordo. Como se as forças para a batalha já tivessem se esgotado, com a nota de rodapé ainda colada a seu nome, ele confessa, ecoando a geração dos vencidos da vida: “Agora já estou a pensar do ponto de vista pessoal, de escrever como aprendi. Se me disserem ‘se não aceitares o acordo, não escreves no jornal’, aí, enfim, a pessoa adapta-se às regras que tem para viver.”

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Cláudio Goldberg Rabin, para piauí