Depois de ler a biografia Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo, uma professora do ensino médio de Salvador decidiu encomendar aos seus alunos um trabalho sobre esse personagem imprescindível da história brasileira, jamais retratado nos livros didáticos. A escola nunca mais fora a mesma. Respaldada por uma eleição democrática, a comunidade escolar decidiu mudar o nome do Colégio Estadual Stiep, que homenageava o ditador Emílio Garrastazu Médici, para o do herói da luta contra a ditadura, Carlos Marighella, provando o quanto o conhecimento da verdade histórica pode ser importante fator de transformação social.
“Isso tudo aconteceu a partir da experiência de um leitor com o livro, o que é fascinante”, observa o jornalista Mário Magalhães, autor da obra vencedora da categoria biografia na II Bienal Brasil do Livro e da Leitura, que acontece em Brasília, esta semana [passada]. Entretanto, ele ressaltou que o desfecho poderia ter sido outro se os descendentes de Marighella ou demais personagens que influíram na sua trajetória de vida não autorizassem a publicação da obra: 50 anos após o golpe de 64, a censura prévia às biografias persiste na legislação brasileira. “Se qualquer uma das pessoas retratadas no livro ou seus descendentes quisesse, poderia proibir a publicação e essa história continuaria a não ser contada”, alertou.
Segundo ele, circulam hoje nos Estados Unidos mais de 300 biografias sobre Michael Jackson, por exemplo, mas o Brasil não possui nenhuma sobre dois dos maiores nomes da sua música: Caetano Veloso e Gilberto Gil, este último também um ex-ministro de Estado que influiu na recente história do país ao implantar políticas públicas revolucionárias, como a que resultou na aprovação do marco civil da internet. “O que está em curso não é um debate entre biógrafos e censores, mas o direito à memória nacional. E não se constrói a história com relatos chapa-branca”, afirmou.
Magalhães lembrou que duas iniciativas buscam, hoje, alterar os artigos 20 e 21 do Código Civil, que permitem que biografados e herdeiros vetem as obras: uma ação direta de inconstitucionalidade que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria da ministra Carmem Lúcia, e o projeto de lei 393/2011, de autoria do deputado Nilton Santos, que pode ser votado no plenário da Câmara esta semana, em caráter terminativo. “Só no Brasil existe isso”, disse ele referindo-se à legislação que autoriza a censura prévia. “Imagine se na Alemanha existiria uma escola chamada Adolf Hitler”, comparou.
“Espero que os culpados sejam punidos”
Vencedor da categoria biografia da Bienal, o autor disse que, a exemplo de Ruy Castro e Fernando Meirelles, não voltará a se dedicar ao gênero enquanto a lei não for alterada. Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo levou mais de nove anos para ser concluído. Demandou 256 entrevistas, consultas a 30 mil arquivos públicos e privados e a leitura de 600 títulos de livros. Um esforço que, para o autor, não pode ser calado por vozes discordantes, sem uma motivação legítima.
Sobre a fronteira entre o que é invadir a privacidade do biografado e fazer história, foi taxativo. “É claro que sou contra se falar da vida privada do vizinho, mas não da trajetória de personagens de relevância para todo o país”, explicitou. Como exemplo, citou o ex-diretor do DOI-Codi de São Paulo na ditadura, general Brilhante Ustra, que comandou mais de 500 sessões de tortura. “É justo para o país que a biografia dele só possa expor o que ele autorizar?”, provocou.
Biógrafo de um dos mais polêmicos personagens da luta contra a ditadura, Magalhães também falou sobre suas expectativas em relação ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade. “Espero verdades, mas também espero que a comissão encaminhe aos órgãos competentes pedidos para que os culpados sejam punidos. Senão, continuaremos a ter Amarildos”, destacou.
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Najla Passos, para Carta Maior