“It is to the Radicals that The Economist still likes to think of itself as belonging. The extreme centre is the paper’s historical position” (A Economist ainda gosta de se considerar pertencente ao campo dos radicais. Sua posição histórica é o centro extremo) – Geoffrey Crowther, então editor do semanário The Economist, em 1955
Quem passeia pela Praça do Relógio, na Cidade Universitária, circunda uma grande torre de concreto (são 50 metros de altura) com um relógio bem no alto. Os ponteiros estão parados já faz uns anos. O mostrador foi pichado de vermelho.
Apesar dos maus-tratos, lá permanece, impassível, o monumento concebido por Rino Levi, com 12 painéis em baixo-relevo desenhados por Elizabeth Nobiling (representando as áreas das ciências humanas e das ciências naturais). No chão, um espelho d’água serve de base para a torre e, em seu contorno, uma frase em letras maiúsculas, inscrita no calçamento, forma um círculo completo: “No universo da cultura, o centro está em toda parte”. Em 1972 Miguel Reale, então reitor da USP, mandou grafar essas palavras sobre o solo em que pisamos até hoje. O passeio compensa.
Dando alguns passos na trilha da ironia – não há como evitá-la –, o transeunte descobre-se pensando que ninguém levou essa verdade tão ao pé da letra como o PMDB. Sem dúvida, no universo do PMDB o centro está em toda parte, assim como a direita e a esquerda não estão em parte alguma. Em seguida, com os olhos de volta ao universo da cultura, o mesmo caminhante se sente reconfortado com a crença de que o centro não é monopólio de ninguém, ainda que alguns falem em mainstream e alternativos, Broadway e off Broadway etc. O centro está em toda parte, mesmo, pois o centro está no observador, assim como está naquele que pede a palavra.
É bom pensar que a cultura seja assim, sem dono, sem muitas hierarquias espaciais, embora lá esteja aquele imenso pedestal para beatificar a medida do tempo. Pensando melhor, a frase ali na calçada também leva uma embocadura irônica (talvez involuntária), posto que assinala graficamente um centro (geográfico) e semanticamente o desautoriza. De um jeito ou de outro, a oração eleva a imaginação dos pedestres que não conseguem deixar de olhar por onde pisam. O centro está em toda parte. “Talvez seja esse o lema que deve guiar para sempre o destino da Universidade de São Paulo”, escreveria mais tarde Miguel Reale, cujo nome se inscreveu mais amiúde no universo da direita.
A “militância pelo apartidarismo”
Foi com uma gota ácida de humor (consciente) – sem ironia não teríamos a modernidade – que Geoffrey Crowther (1907-1972), ainda hoje considerado um dos mais célebres editores da revista The Economist (ele dirigiu a redação do semanário inglês entre 1938 e 1956), inventou essa tirada de “centro extremo”. À primeira vista, a ideia lembra a máxima folclórica da política mineira – “nem contra nem a favor, muito pelo contrário” –, mas não é nada disso. Não se trata de mineirice britânica. É bem verdade que, de Lula a Gilberto Kassab, passando por Marina Silva, a maioria mais que absoluta, absolutista, dos políticos brasileiros já se disse “nem de esquerda nem de direita”, justamente para fugir aos rótulos, aumentar a confusão ideológica e expandir o centro indefinido no qual todos por aqui parecem sentir-se muito à vontade. Mas Geoffrey Crowther é outra conversa. Ninguém aqui tem procuração para falar em nome dele, evidentemente, mas é possível (e necessário) interpretá-lo à luz do presente. O que dá para saber, de cara, é que ele não tinha o objetivo de escapar a classificações ideológicas quando disse o que disse. Seus objetivos eram radicalmente outros.
Recapitulando as posições defendidas pela Economist ao longo de sua trajetória centenária, percebemos hoje que a revista vem buscando, como regra, uma leitura radical das tensões que reporta e analisa. Seu radicalismo, contudo, não a conduz à fidelidade a este ou aquele partido. Sua coerência não é perceptível aos óculos com os quais estamos habituados a enxergar o espectro ideológico que vai da esquerda à direita. A Economist escreve a favor do casamento gay, do controle da posse de armas e da legalização das drogas (causas vistas como “de esquerda”), assim como apoiou decididamente Margaret Thatcher (o que poderia ser mais “de direita”?).
Na visão (irônica) do jornalista, o “centro extremo” pode ser traduzido como bom senso radical, uma lucidez que escapa a alinhamentos com a militância política. Não que não haja ideologia no bom senso. Por certo que há. Aqui, no entanto, bom senso não significa senso comum (este, sim, ideologia pura) – quer dizer outra coisa: um tecido que se trama pelos fios de que a razão (ainda que exígua) pode dispor, acima das disputas entre as correntes doutrinárias. Esse bom senso carrega valores, isso é indiscutível, mas não como dogmas. Retrabalha e reposiciona valores (no centro, é claro) mais ou menos como a ciência retrabalha constantemente as suas leis e os seus postulados (embora, por favor, jornalismo não seja ciência de modo algum; apenas o método guarda alguma semelhança).
O jornalismo não cabe na taxonomia que serve para classificar os partidos; cabe melhor no centro, um centro (mais gravitacional, poderíamos dizer, e menos linear) que se projeta no meio da massa de formulações e dados que se batem no denso espaço público em que existimos. A eficácia da instituição da imprensa depende da sabedoria (radical) de se situar nesse centro (que se desloca e se reconfigura permanentemente). Essa sabedoria não cai do céu, naturalmente. Não vem da inércia. Ela brota de uma espécie de “militância pelo apartidarismo”, instintiva nos jornalistas e incompreensível para muita gente.
É por isso que, no universo da imprensa, o melhor está no centro. No mais extremo centro.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM