As redes sociais mudaram em alguns pontos o jornalismo. O principal é que ganhamos um termômetro, sabemos quando tocamos num veio que mexe com as pessoas porque, repentinamente, o resultado vem: retuites, compartilhamentos, e a cada link compartilhado, uma nova leva de discussões mais ou menos intensas brota. Quando fiz por aqui, na semana passada, uma defesa do direito de Rachel Sheherazade falar, ocorreu isto.
Sheherazade, âncora e ex-comentarista do jornal vespertino do SBT, se manifestou em fevereiro considerando “compreensível” a prisão por justiceiros de um menor de rua, nu, acorrentado pelo pescoço com tranca de bicicleta. Cena de Debret. Nas inúmeras discussões despertadas pela coluna, houve críticas à direita e à esquerda. Mas o que mais chama a atenção é um ponto: como melhor definiu um comentarista, “deveria haver algum tipo de sanção para quem fala atrocidades”. É como se, no mundo ideal, houvesse um nível de bom gosto de opinião, de civilidade argumentativa, que não deveria ser atravessado em qualquer hipótese.
Seria, obviamente, difícil estabelecer que linha invisível é esta. Mas isto é o de menos. O que importa é que as vantagens da plena liberdade de expressão ainda não são óbvias para nós. Por isso, sempre que alguém incomoda, o reflexo brasileiro é buscar um mecanismo de silenciar. Este reflexo é comum a ambos os lados do espectro ideológico.
O resultado é que, democrático faz quase trinta anos, o Brasil ainda é muito pobre em conversas profundas. Um exemplo: tortura. Vez por outra aparece um caso como o do pedreiro Amarildo e somos lembrados de que, no Brasil, policiais torturam. Não sabemos o quanto, mas sabemos que há. O menor de rua do Flamengo foi torturado: apanhou, foi despido e preso em praça pública de forma degradante. É certo que coisas piores ocorrem nos porões. Tortura tem muitos níveis de sadismo. E, quando uma pessoa vem a público dizer que aquele nível de tortura é compreensível, de presto muitos querem calar sua voz. Se permitirem que fale, vem o argumento, pode acontecer mais.
Uma vacina que funciona
Mas acontece ainda assim. E continuará acontecendo. Em parte, acontece porque muitos acreditam que tortura funciona. Um bom corretivo público, eles dão jeito. Num pau de arara, ele solta informação. Este é assassino contumaz, não merece mesmo outra coisa. Como o diálogo é interrompido na raiz, não sentimos o pulso do país. Não permitimos que argumentos pró e contra apareçam. Informação importante não circula. (Tortura é ineficaz como medida corretiva e, principalmente, para angariar informação.)
O maior símbolo da interrupção do diálogo no país é o Congresso Nacional. É um Congresso que não debate grandes questões. Não tem posição sobre política de drogas. Sobre aborto. Sobre casamento gay (esta o Supremo decidiu pelos parlamentares). No segundo semestre, quando as lojas começarem a soltar notas tornando evidente nossa carga tributária, teremos uma excelente oportunidade para um diálogo sobre a qualidade dos serviços prestados pelo setor público em troca de tanto dinheiro.
Interrompemos diálogos demais no Brasil. Nos autocensuramos para evitar o conflito. E não encaramos o fato de que algumas discussões desagradáveis, se as permitirmos fluir, produzem um país melhor. No mínimo, um país mais claro, no qual as reais opiniões não ficam camufladas pelo manto da cordialidade.
Não é só o jornalismo que sofreu o impacto das conversas na internet. Nelas se manifesta, também, o Brasil #semfiltro. Rachel Sheherazade pega leve: há, na rede, uma direita agressiva, que acredita na violência como solução para muito, se não for para tudo. E há uma esquerda totalitária, paranoica, igualmente violenta. Se o país for mais exposto a eles, toma um susto e afasta os radicais. Liberdade de expressão é a vacina que funciona.
******
Pedro Doria, do Globo