Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Marco zero

O Marco Regulatório das Comunicações ocupa espaço privilegiado nos debates da esquerda brasileira. Entre seus ativos defensores, além da blogosfera mobilizada [http://www.fndc.org.br/], há o ex-ministro Franklin Martins (que tanta falta fez ao governo Dilma Rousseff) e várias entidades ligadas ao setor, reunidas numa Frente Parlamentar [http://frentecom.wordpress.com/] que aglutina os resultados das consultas públicas realizadas nos últimos anos. Alheio às pressões, contudo, o Planalto esquiva-se do projeto e não parece disposto a abraçá-lo no curto prazo. Menos ainda no contexto político-eleitoral de 2014.

Um dos grandes problemas originais da iniciativa foi agregar expressões infelizes como “controle social da mídia”, que apareceram com a mesma ambiguidade tanto nos elogios da militância progressista quanto nas objeções do conservadorismo organizado. Cada qual apresentou sua própria noção de “controle”, de “social” e de “mídia”, prejudicando um conceito que tem pouco ou nada a ver com essa terminologia.

Os adeptos da medida são unânimes quanto aos malefícios que a justificam. Mas apenas diagnosticá-los não basta: é necessário elaborar expedientes preventivos ou reparatórios que respeitem os princípios do Estado democrático de direito e ajudem a consolidar a miscelânea de normas existentes. Pois, ao contrário do que muitos pensam, a maioria dos gêneros e subgêneros de abusos identificados com o setor (difamação, calúnia, preconceito, desdém pela cultura regional, monopólio corporativo, predomínio do capital estrangeiro, manipulação eleitoral) encontra-se tipificada legalmente. Falta o Congresso regulamentar os tópicos e dar-lhes base jurídica incontroversa.

Sempre que isso ocorre, porém, como no caso recente do direito de resposta, a campanha por um Marco Regulatório único e abrangente perde algo de sua força. Regras paliativas e jurisprudências questionáveis, geralmente improvisadas para saciar polêmicas circunstanciais, criam a falsa impressão de que as lacunas já foram corrigidas e empurram as soluções faltantes para o escrutínio implausível do STF. A questão das biografias não-autorizadas [ver aqui] acaba de mergulhar nesse limbo.

Hipótese remota

Ao mesmo tempo, o vácuo de legitimidade criado pela omissão parlamentar gera incertezas sobre os organismos mais apropriados para a supervisão de atividades tão vastas e complexas. Há séria diferença entre nomear e eleger os fiscalizadores, entre selecioná-los na estrutura dos Poderes e em colegiados setoriais, entre preservar a autorregulação e atravessá-la com decisões externas. O dilema envolve inúmeras implicações práticas e termina paralisando o debate sobre a própria natureza dessa tutela.

Existem dificuldades também para elucidar o alcance da fiscalização. “Mídia”, em tese, abarca uma vastidão de suportes, mas é sabido que ninguém conseguirá impor limites à internet ou aos periódicos impressos, ainda que ambos sejam alvos de largo descontentamento. Restariam os veículos de rádio e TV, concessões públicas sujeitas a variadas contrapartidas. Mas como proteger a subjetividade no discurso audiovisual, afastando as patrulhas do “bom-gosto” e da “decência” [ver aqui], que amiúde exibem suas garras autoritárias?

Reposta simples e inevitável: rechaçando qualquer tentativa de cerceamento das manifestações autorais, opinativas e jornalísticas. Ora, respeitadas as amplas acepções dessas categorias e descontando a excepcionalidade do universo publicitário, quase todo material propagado por radiodifusão poderia resguardar-se através de alegados preceitos constitucionais. Mesmo os produtos mais discutíveis (do proselitismo religioso ao odiado Big Brother) [ver aqui], forçando a retórica liberal e os gastos dos lobbies legislativos, teriam sobrevida assegurada. E, convenhamos, é bastante remota a hipótese de certas atrações populares e rentáveis serem explicitamente proibidas.

Causa ingrata

Talvez para evitar as dificultosas particularidades nacionais, alguns militantes recorrem ao elogio de fórmulas estrangeiras, sem perceber que se distanciam ainda mais de uma solução razoável. Primeiro, porque superestimam as raízes libertárias do controle midiático em democracias desenvolvidas, onde o acirramento da pressão às TVs abertas identifica-se historicamente com a agenda de governos ultraconservadores (o período Bush nos EUA [ver aqui], por exemplo). Em segundo lugar, nem as rigorosas legislações europeias nem a comemorada Ley de Medios argentina foram capazes de impedir a sofrível qualidade das programações gratuitas nos veículos privados. Ademais, é incoerente buscar modelos normativos em sociedades que desfrutam de emissoras públicas poderosas, tradicionais e respeitadas, e de Judiciários dispostos a seguir o mínimo espírito republicano nas suas demandas.

Em suma, o nosso Marco Regulatório, apesar da verborragia que caracteriza reivindicações do tipo, envolve “apenas” alguns dispositivos para inclusão de conteúdo setorizado, o combate ao abuso de poder empresarial nas concessões públicas e, na melhor das hipóteses, o seu controle pelos parlamentares. Parece muito, mas, ao cabo de todas as ressalvas e adaptações técnicas, o resultado não ficará muito distante do modelo atual. Podemos adivinhar a avalanche de sócios fantasmas, empresas de fachada e programações canhestras que virá remendar as necessidades dos infratores.

De qualquer modo, no árduo cotidiano das ações judiciais, os esforços punitivos serão barrados pela proverbial resistência das cortes, com os diversos subterfúgios que a caracterizam. Assim, uma dolorosa maioria dos vícios midiáticos repudiados pela esquerda permanecerá intocada, simplesmente porque jamais haverá suporte legal, respaldo popular ou vontade política para extingui-los. É aconselhável, portanto, discutir o projeto com base nas dimensões que a realidade cedo ou tarde imporá.

Antes que as expectativas desmoronem e o movimento perca o salutar ímpeto inicial, talvez fosse mais eficaz redefinir suas prioridades. Pois há algo de assombroso no fato de que, em pleno combate pela democratização da mídia, ninguém sugira alternativas progressistas, fora do difuso espectro virtual, que possam romper o monopólio informativo das grandes corporações. Se a militância está preocupada com os suportes tradicionais, não seria razoável articular a criação de um jornal diário ou um canal de televisão com abrangência e níveis editoriais suficientes para contrapor os veículos hegemônicos?

Um pouco de espírito propositivo e empreendedor agregaria novas perspectivas a essa causa meio ingrata, que se arrisca a terminar seus dias lutando para deixar as coisas como estão.

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Guilherme Scalzilli é historiador, escritor e mestrando em Divulgação Científica e Cultural pelo LabJor (Unicamp)