Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O enigma da favorita vaiada

Um enigma dos mais intrigantes envolve a candidatura Dilma Rousseff neste momento. As pesquisas mostram que a presidente, mesmo sofrendo acentuada queda nas intenções de voto nos últimos meses, mantém-se favorita, com folgados 37% na última enquete do Ibope, índice que a reelegeria já no primeiro turno. Não obstante tal favoritismo, ela tem sido sistematicamente vaiada a cada aparição pública, com mais agressividade em eventos ligados à Copa do Mundo ou que reúnam um público grande e heterogêneo.

O enigma da favorita vaiada desafia interpretações e instiga questionamentos. Trata-se de um fenômeno único, que não se repete nos âmbitos estadual e municipal e não afetou seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva, cujo única vaia memorável se deu em um contexto polêmico, com fortes indícios de ter sido orquestrada pela claque de um cacique político carioca.

O ex-presidente, como se sabe, foi um dos raros presidentes a deixar o segundo mandato com aprovação na casa dos 80%, rivalizando com os índices históricos obtidos pelo ex-presidente norte-americano Ronald Reagan. Recebeu do povo, até o final, calorosas manifestações de afeto a cada vez que aparecia em público. Dilma, a despeito do carisma muito menor, parecia, no início de seu mandato, ter herdado tal empatia, chegando a interagir com multidões que a saudavam.

Desinteresse midiático

Mas isso foi antes das chamadas Jornadas de Junho, as súbitas e até agora insuficientemente debatidas manifestações populares que se alastraram pelo país em 2013. Embora não se tratasse de um protesto exclusivo contra o governo, foi a partir dali que se tornaria evidente a mudança de comportamento do público nas aparições presidenciais.

Nem os cientistas políticos, nem os colunistas dos primeiros cadernos têm prestado a devida atenção ao fenômeno das vaias, sejam estas dirigidas à presidente com alto índice de aprovação (o que Dilma foi ao menos até março) ou à candidata favorita à vitória em primeiro turno. A mídia, que supostamente teria condições de investigar e checar hipóteses, ir a campo e cobrir de maneira condizente os atos públicos presidenciais, mantém-se inebriada pela inação preguiçosa que a redução de despesas explica, mas não justifica, agravada pelo hábito de buscar respostas na internet – e em nenhum outro lugar – e pela convicção de que o país só vai se interessar pelas eleições após a Copa do Mundo.

Leque de hipóteses

Este artigo se propõe a elencar algumas hipóteses acerca da enigmática contradição que envolve a favorita Dilma e as vaias. Não tem a pretensão de esgotar o assunto ou de apresentar uma conclusão – deixa esta a cargo do leitor, se for o caso. Quer apenas estimular o debate.

Uma primeira hipótese interpreta as vaias à mandatária como uma decorrência tardia justamente das Jornadas de Junho, no bojo do crescimento de uma consciência cívica que, concebendo a rua como o local de excelência da manifestação da cidadania, se mostraria ciente da importância de ocupar espaços, aproveitar oportunidades e, assim, se valer das aparições públicas da presidente para protestar.

A favor dessa hipótese há o fato, já mencionado, de que foi a partir dos protestos de junho do ano passado que as aparições públicas de Dilma passaram a ser sistematicamente vaiadas. Os apupos seriam mais uma manifestação do que o sociólogo Luiz Werneck Vianna identificou, em artigo recente, como “essa difusa sensação de mal-estar e esses pequenos abalos que vêm surpreendendo a rotina do cotidiano não só nos grandes centros metropolitanos”. Para além da data de início das vaias, tal hipótese, no entanto, carece de elementos objetivos que a sustentem (ou a desmintam).

Demandas reprimidas

Uma segunda hipótese para as vaias presidenciais diz respeito ao modo como a administração Rousseff vem, desde seu início, lidando com demandas populares, protestos e greves. A recusa ao diálogo, agravada por táticas de boicote e enfrentamento que com frequência incluem o recurso à violência, tornou-se corrente no atual governo, a despeito de comandado por um partido de denominação trabalhista.

Foi assim com a greve dos professores universitários em 2012, que se alastrou por quatro meses e incluiu espancamento de manifestantes em frente ao MEC; vem sendo assim com a corrente greve da Polícia Federal – nos dois casos, com o governo Dilma contando com a condescendência cúmplice dos principais veículos de mídia, num alinhamento eventual de posições que, se confirma a índole classista, desmente o caráter intrinsecamente antipetista que o petismo militante atribui ao jornalismo corporativo.

Tal hipótese explicativa para as recepções negativas a Dilma baseia-se em elementos concretos e, malgrado o que informa acerca do comportamento de um partido dito trabalhista em uma democracia, é a favorita nas hostes petistas, por pressupor que as vaias não seriam a manifestação de um sentimento popular disseminado, mas fruto exclusivo da ação de grupos organizados, com interesses político-partidários. Esta última assertiva, no entanto, não se confirma inteiramente se observarmos com atenção como se comporta o público em eventos de maior porte. Nesses casos, mesmo na eventualidade da ação de protestos organizados, ouvem-se apupos à mancheia em meio à massa de espectadores.

Palmas ausentes?

A configuração geopolítica da base de apoio dilmista e os efeitos eleitorais dos Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCs) – Bolsa Família à frente – constituem o cerne da terceira explicação para a contradição ente as vaias e os índices da presidente. De acordo com esta hipótese, a má recepção a Dilma em suas aparições públicas correlaciona-se diretamente ao fato de estas priorizarem, por razões eleitorais, médias e grandes cidades, ao passo que, como o demonstram as pesquisas, os melhores índices da presidente ocorrem em cidades pequenas e em grotões. O fato de o grosso da clientela de tais programas sociais residir, em sua maioria, justamente em localidades com tal perfil, tenderia a reforçar a hipótese de que boa parte do público que aplaudiria Dilma é escasso em tais comícios.

Com efeito, segundo projeções do próprio governo federal, o Bolsa Família beneficia hoje cerca de 14 milhões de famílias, sendo que aproximadamente 38 dos 51 milhões de cidadãos beneficiados estariam aptos a votar. É um número altamente significativo, correspondendo a 28,5% do total de 140 milhões de eleitores do país. Mesmo que, como pesquisas têm mostrado, esse total de votos não vá para o PT, a manutenção de uma maioria é reserva eleitoral mais do que suficiente para desequilibrar eleições presidenciais de ordinário concorridas.

Trata-se, assim, de uma hipótese explicativa que gera preocupação, pois, se confirmada, apontaria para uma grave distorção na atual dinâmica eleitoral do país, ocasionada por um programa cujos benefícios no combate à miséria e à pobreza têm sido internacionalmente reconhecidos. Parece justo que o PT, por tê-lo implementado em bases efetivas, merece colher os louros eleitorais decorrentes. Mas, pela própria natureza assistencialista do programa em uma sociedade com crônicos problemas sociais, ele não pode se transformar em reserva eleitoral perpétua. A institucionalização do Bolsa Família, de política de governo em política de Estado, seria uma maneira de contornar a questão sem prejuízo nenhum para os beneficiários, sem punir arbitrariamente as forças políticas que tiveram o mérito de bancá-lo, e – mais importante – preservando uma isonomia eleitoral tão necessária quanto benéfica à democracia brasileira.

O fator desencanto

Mas a mais danosa das hipóteses acerca do descompasso entre vaias e a intenção de votos em Dilma é a que aponta para um desencanto generalizado da população para com a política. Em texto na revista CartaCapital, o colunista Mauricio Dias se baseia em pesquisas recentes para dimensionar a gravidade da questão:

“A soma dos porcentuais de votos brancos e nulos, de rejeição e daqueles que não quiseram ou não souberam responder, está próxima dos 40%. É um porcentual inédito e expressa, aproximadamente, quase 50 milhões de um total de 140 milhões de eleitores brasileiros (…) Dos 37% que recusaram todos os candidatos, 72% não têm nem um pouco ou quase nenhum interesse na próxima eleição de 2014. Um dos pontos mais curiosos, indicativo do desencanto do eleitor, pode ser tirado dos que responderam ‘ruim e péssimo’ na avaliação de Dilma: 62% não votariam em ninguém se a eleição fosse hoje.”

Esses resultados expressam, portanto, uma desaprovação “a tudo que aí está”, numa postura que, não obstante legítima, costuma ser terreno fértil para as tentações totalitárias. Como hipótese à questão central postada pelo artigo, aponta, portanto, para um problema generalizado, que supera não apenas a candidata Dilma Rousseff, mas a própria conjuntura político-eleitoral que ora se apresenta.

Não fornece, no entanto, resposta à pergunta sobre as razões de o fenômeno das vaias não ocorrer, com igual intensidade, nos comícios dos adversários de Rousseff e nem no dos governadores ou candidatos ao governo com altas intenções de voto.

Inquietação

Talvez essa resposta esteja não esteja particularmente em nenhuma das hipóteses acima elencadas, mas na combinação de fatores citados em algumas delas, eventualmente acrescida de quesitos que não foram aqui abordados.

A perspectiva de que uma presidente recém-eleita não possa aparecer em público sem ser admoestada por um coro de vaias talvez faça parte da democracia. Ainda assim, não deixa de ser algo que causa justo e inquietante estranhamento.

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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog