“Sabendo usar, não vai faltar.” Com esse slogan, a Sabesp se ufana de si em campanhas publicitárias que inundam os meios de comunicação paulistas. Enxurradas, cascatas, chuvaradas e alagamentos midiáticos se apossam de todos os espaços. Na televisão, principalmente. Por vezes, há duas mensagens da empresa num único intervalo comercial. Mais que um aguaceiro, é um oceano que desaba sobre os olhos e ouvidos dos telespectadores de São Paulo. Mal dá para respirar. (Glub.)
“Sabendo usar, não vai faltar.” Entre um caldo e outro, tentemos pensar a respeito do que há de sentido nesse dístico. Há nele uma pretensão de máxima filosófica, como se contivesse um ensinamento tão precioso quanto o líquido vital. Como um conselho paterno, o slogan sabespiano quer nos ensinar a bem usar a água.
Aqui, porém, saber como usar significa exatamente saber como não usar – ou, no mínimo, usar bem menos. Sigamos um pouco mais esse fio lógico. Por meio de uma afirmativa (saber usar), que soa convidativa e edificante, o dístico transmite uma negativa (saiba não usar), que tem até ares de chantagem (se você insistir em usar demais, vai ficar sem de uma vez por todas e depois não venha reclamar).
Visto assim, o bordão sabespiano perde um pouco de seu apelo virtuoso e se revela apenas o oposto do que diz ser. Por aí, podemos ver a sua face menos dissimulada: não é filosofia, é propaganda de governo. Caudalosamente.
Toda propaganda do poder escreve o oposto do que sabe ser a verdade. Por exemplo: “Brasil, um País de Todos”. Quem afirma isso sabe que o Brasil não é de todos coisa nenhuma. Ou o velho slogan do ex-prefeito Gilberto Kassab: “Antes não tinha, agora tem”. Ora, o que mais faltava antes (e não era água) continuou faltando ainda mais na gestão dele. A única coisa que São Paulo antes não tinha e depois passou a ter foi ele mesmo: Kassab. E paremos por aqui com os exemplos, para o negócio não ficar ainda mais constrangedor. Calma que lá vem outro tsunami hidropublicitário da Sabesp. (Chuá.) Tome fôlego.
Toda propaganda de governo pinta o governante como a vítima que dá conselhos de pai e se desdobra feito mãe para prover a felicidade da filharada. Toda propaganda de governo diz que a mãe é incompreendida e injustiçada pelos ingratos. Toda propaganda de governo é a nostalgia da voz de Vicente Celestino. Toda propaganda de governo faz de conta que suplica a piedade do povo, quando de fato o oprime.
A Sabesp não é exatamente governo (o governo paulista controla “apenas” 50,3% de seu capital). Não obstante, é 100% propaganda de governo. A Sabesp é uma mãe que padece – não no paraíso, mas na Cantareira.
Encharcado pela torrencial discurseira hidrogovernista, o telespectador fica meio bêbado e até começa a acreditar: os canos vão secar em terras bandeirantes, mas a culpa não é da Sabesp, pobrezinha. A culpa é da seca, a maior seca desde Bartolomeu Bueno da Silva. A natureza, você bem sabe, é ingovernável. A culpa é dessa ausência danada de precipitações pluviométricas. Ah, sim, e a culpa é também dessa turma que lava carro, que toma banho de mais de três minutos, que fica dando descarga à toa, desse povo que não sabe (não) usar. A Sabesp, imagine (chuáaa, vem água aí), a Sabesp (glub) é a melhor empresa do sistema solar, ela fez trocentos quilômetros de tubulações e outras obras primas, fez aquelas coisas vistosas que aparecem na fotografia atrás do moço que fala sem parar (chuáaa). Ainda bem que existe a Sabesp, nossa mãe provedora d’água. Se não fosse ela, seríamos o deserto do Saara. Vamos lá! Todos juntos venceremos a estiagem (coisa de oposição), vamos economizar, a união vence a aridez, vamos saber (não) usar, vamos ganhar bônus no fim do mês, governo bacana dá até desconto. (Glub.)
O que a publicidade esconde
No domingo (27/4), o Estadopublicou um editorial obrigatório: “Pior do que parece“. Em 2012, informa o texto, 35,6% da água da Sabesp foi desperdiçada, escorreu por vazamentos nas tubulações nos subterrâneos da urbe, antes de chegar às residências e às empresas. O quadro só vem piorando. Na região central de São Paulo, os canos datam da década de 30 do século passado – e o envelhecimento dos dutos é uma das causas principais de tanta perda.
O cidadão tem o direito de conhecer em detalhes o quadro calamitoso. Tem direito de ser informado sobre as razões do colapso iminente do abastecimento da capital. Não fosse a imprensa, ninguém saberia de quase nada. O poder público tem o dever (legal) de prestar contas, mas não presta. Aliás, o poder público no Brasil (em todas as esferas, nos níveis municipal, estadual e federal) tem essa obsessão doentia de usar dinheiro público (ou 50,3% público) não para prestar contas, mas para enaltecer as autoridades e ocultar o que realmente interessa. No caso presente, o da falta d’água, em vez de explicar as razões da omissão ou da incompetência da rede de abastecimento, a Sabesp propaga o elogio em boca própria. É o que estamos vendo na TV todos os dias. Como informou reportagem de Fabio Leite no Estado (26/4, E8), a companhia vai gastar a ninharia de R$ 43,7 milhões em sua comunicação, pois “a campanha publicitária é de fundamental importância para a conscientização da população neste momento de escassez hídrica”. Mas “conscientização” de quê? De que a Sabesp é maravilhosa?
Você tem sede de quê?
Os seres humanos têm sede de água. O poder tem sede de mais poder e acredita que, se souber usar bem a propaganda, os votos virão. E tem razão de acreditar. Esse tipo de estratagema tem dado certo no Brasil. Não há limites para gastos públicos em publicidade. Nem para o autoelogio. É assim com todos os governantes, de todos os partidos, sem exceção. E com a Sabesp também.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM