Uma das discussões mais evidentes atualmente no jornalismo é como a convergência tecnológica afeta a rotina de trabalho dos profissionais da área. O assunto orientou boa parte dos debates durante o XVI Intercom Centro-Oeste, ocorrido na Universidade Católica de Brasília/ campus Taguatinga (DF), de 8 a 10 de maio, ainda que o evento tivesse como tema “Comunicação: Guerra & Paz” e lema “Convencer e Conviver: 100 Anos de Publicidade, Propaganda e Relações Públicas”.
No bojo da discussão sobre convergência no âmbito jornalístico aparecem alguns termos que, aos poucos, se cristalizam no vocabulário de quem a observa e a problematiza. Entre eles está “jornalista multitarefa”. Grosso modo, trata-se do profissional tido como símbolo do jornalismo contemporâneo, caracterizado pela multimidialidade (texto, imagem estática, imagem em movimento, áudio, infografia, animação) multiplatafórmica (notebook, netbook, smartphone, tablet) conectada à internet.
Com a multitarefa, conforme o enquadramento dado, o jornalista repórter, por exemplo, além de coletar informações para fazer uma matéria impressa ou uma entrada ao vivo na TV ou um boletim radiofônico ou uma nota para o site ou blog, também deve fotografar, filmar, postar no Facebook e no Twitter. Chegando à redação, terá de diagramar texto e fotografia ou editar vídeo e/ou áudio ou inserir no material efeitos de modo a transformá-lo em slide show, áudio slide show, clipe, minidocumentário, animação, infográfico interativo…
Engajamento comercial
O parágrafo acima expõe de modo genérico os muitos afazeres do jornalista multitarefa, contudo demonstra que a postura esperada advém prioritariamente de uma visão mercadológica de trabalho e, por extensão, pouco afinada com a concepção social da profissão. Essa constatação, de que vale mais a velocidade da veiculação, a quantidade de informações e o aproveitamento extenuado dum mesmo material, repete o que já se percebe há muito nos veículos de maior projeção no país e em considerável parcela dos cursos universitários de Comunicação ou Jornalismo.
E, mais do que isso, confirma que a propalada ciberdemocracia (Lévy, 2005), se orientada por um viés mercadológico, portanto privatista, nada tem de democrático além da terminologia. É o que se pode deduzir quando se nota que grande parte dos mecanismos de interatividade usados por portais, sites e blogs se dão no sentido de buscar um engajamento junto à marca da empresado governo que a disponibiliza.
Isso também foi possível de se perceber no grupo de discussão temática “Rádio, TV e Internet”, do Intercom/Taguatinga, realizado na tarde de sexta (9/05). O paper “O poder está em suas mãos: a experiência em segunda tela e a participação dos telespectadores – um estudo de caso do People’s Choice Awards”, de Brenda dos Santos Parmeggiani (da UnB), é um bom exemplo. O trabalho refere-se a como um programa feito nos Estados Unidos e reproduzido no Brasil, pelo canal Warner, pelo respectivo aplicativo e pela participação de telespectadores via Twitter, conseguiu relevante nível de engajamento… comercial, para a marca.
Conversando e sentindo o cheiro das ruas
O paper “O ciclo do jornalismo integrado e os comentários das ‘Mais lidas’ do G1”, de Marcelli Alves da Silva (da Universidade Federal do Maranhão), descreve como vídeos amadores postados no YouTube tornam-se populares ao serem selecionados e divulgados pelo Jornal Nacional e pelo portal de notícias da Globo. Além disso, demonstra que o citado grupo de comunicação vale-se do fato de o material ser de “segunda mão”, portanto não produzido pela empresa, para se desresponsabilizar pelo possível tom sensacionalista e pelo potencial nível de indignação e até mesmo de “justiçamento” que o vídeo possa causar.
Esse tipo de postura não coaduna com a prática do bom jornalismo, vez que o profissional e o veículo são responsáveis pelo que acolhem e dão visibilidade. Afinal, como estabelece o artigo 4º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: “O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação”. Então, sabe-se, errar é humano e passível de retratação, desculpaperdão, o que não tem nada a ver com desresponsabilização conscientemente pelo conteúdo difundido.
Também o paper “Rádio e Convergência: aproximação inicial ao site da rádio Aurora FM, de Alto Araguaia”, de Roscéli Kochhann (Universidade do Estado de Mato Grosso), merece ser registrado, sobretudo pelos questionamentos e respostas após sua apresentação. Uma das indagações feitas à autora foi se a rotina do jornalista multitarefa diminui a quantidade de tempo do trabalho de campo, fazendo coberturas. “Sim, os jornalistas radiofônicos têm passado menos tempo na rua, ficando mais nas redações.” A reposta indicou o que tenho percebido ser uma crescente entre profissionais de outros tipos de meios de comunicação, principalmente os de portais, sites e blogs.
Diante disso, nunca é tarde nem demais lembrar que o jornalismo lida com a realidade e, nada melhor para desenvolver este tipo de trabalho, do que deslocar-se fisicamente, conversando com as pessoas, olhando-as nos olhos, sentindo os cheiros das ruas, as movimentações das repartições, das empresas, das assembleias, dos bairros, apartamentos e casas onde moram os entrevistados.
Sempre fomos multitarefas
Como aponta Pereira (2004), o trabalho de campo é fundamental, sendo o telefone e a internet (acrescento o tablet e o smartphone) estratégicos e complementares. Do mesmo modo, Salaverría e Negredo (2008) afirmam que concentrar o processo jornalístico na via virtual pode acarretar em conteúdos ensimesmados, homogêneos e superficiais. Os autores falam a partir do universo radiojornalístico, porém suas palavras devem ser expandidas para todo o jornalismo. Ainda nessa linha de pensamento, Avilés e Carvajal (2008) – voltados ao radiojornalismo, mas com ponderações que englobam toda área jornalística – atentam para uma remuneração salarial em consonância com o volume de trabalho, assim como para a responsabilidade dos entes contratantes (privados, públicos, estatais e do terceiro setor) em investir em qualificação técnica.
Para finalizar, é bom lembrarmos que a tal multitarefa não é algo novíssimo, como querem alguns teóricos da comunicação e muitos empresários vidrados em encontrar formas de lucrar mais sem contratar funcionários. Afinal, jornalismo sempre foi um serviço feito em conjunto, em parceria, seja entre repórter e fotógrafo, repórter e cinegrafista (e o auxiliar levando a iluminação), repórter, editor, diagramador e editor-chefe…
De igual maneira, o jornalista sempre foi estimulado a ter ampla e crítica visão de mundo, a ler bastante, a frequentar diversos tipos de lugares, a dialogar com diferentes segmentos sociais, a saber pautar (e se pautar), a apurar (ter “faro fino”, notar o ambiente, mudanças de humor, algo nas entrelinhas), a lidar com documentos, a redigir, a ter um texto compreensível e direto, postura firme e respeitosa na tela, agilidade e extroversão no rádio…
Esse agir profissional, múltiplo e amplo, é que deve gerir o jornalismo em convivência com as tecnologias conectadas à internet, e não o contrário, porque, obviamente, sempre há uma linha-mestra de condução por trás das ambiências de trabalho. Desse modo fica mais fácil entender porque um repórter precisa de tempo para levantar informações, testá-las (comprová-las), transformá-las em texto, áudio ou vídeo, divulgá-las nas redes virtuais sociais, por exemplo.
Porque, antes de sermos jornalistas multitarefa, somos jornalistas, e por isso mesmo devemos ter compromisso social.
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Gibran Luis Lachowski, jornalista e professor universitário