Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Nova classe média, grande mídia e cenário musical

Um espetro ronda a sociedade brasileira: trata-se da “nova classe média”, um enorme contingente populacional formado por cerca de quarenta milhões de pessoas que ascenderam economicamente na última década. Estudos acadêmicos, das mais variadas tendências ideológicas, têm se dedicado a entender as causas e as consequências do surgimento desse novo segmento social. Segundo Jessé Souza, cientista social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), “a discussão acerca da chamada ‘nova classe média’ é o debate social, econômico e político mais importante do Brasil contemporâneo”.

Não obstante, os emergentes brasileiros estão cada vez mais presentes na mídia. Jornais e revistas de circulação nacional têm produzido inúmeras reportagens sobre esse novo fenômeno sociológico. De acordo com Adriana Nicacio e Lana Pinheiro, da IstoÉ Dinheiro, “a nova classe média brasileira é composta por milhões de pessoas que saíram da marginalidade da economia para aproveitar as benesses do aumento de renda e do acesso ao crédito fácil”. “Essa população emergente, com seu desejo de continuar a consumir e seu foco no progresso pessoal, é um sintoma de que o Brasil está melhorando”, apontou uma reportagem da revista Época.

Como não poderia deixar de ser, a maior emissora de TV do país também tem concedido bastante destaque a esse novo segmento social, menos por interesses sociológicos do que por razões comerciais. Telenovelas que anteriormente apresentavam como protagonistas apenas famílias abastadas da Zona Sul do Rio de Janeiro, atualmente trazem como personagens principais empregadas domésticas, futebolistas de clubes modestos, cabeleireiras e pequenos comerciantes, entre outros profissionais. Tramas como Avenida Brasil, Cheias de Charme e Geração Brasil têm suas histórias centradas em indivíduos que têm perfis próprios à “nova classe média”.

O repertório dos emergentes

Segundo um levantamento realizado pela revista Veja, 79% dos personagens de Avenida Brasil representavam a “nova classe média brasileira”. “Foi uma grande ideia centrar a novela na classe média emergente. É o reflexo do novo Brasil, das famílias que ascenderam, conseguiram dinheiro, mas que não necessariamente têm boa educação”, asseverou o sociólogo Geraldo Tadeu, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio (Iuperj), em entrevista ao portal Terra.

Ao contrário da tradicional classe média (relativamente politizada), a “nova classe média” é alienada e pouco instruída. Enquanto a “antiga classe média” tinha como principal característica a capacidade de converter capital econômico em capital cultural, ou seja, um estilo de vida que pressupõe o hábito de leitura, ou frequentar lugares como teatros e feiras culturais, a “nova classe média” é composta basicamente por indivíduos que têm o consumismo exacerbado como praticamente a única forma de legitimar sua atual posição social.

Nesse sentido, não é por acaso que o sertanejo universitário (que ressalta em suas letras o “carrão”, a roupa de grife e a balada da moda) e o funk ostentação (o nome já diz tudo) compõem a trilha sonora dessa “nova classe média” extremamente consumista. As composições que fazem o repertório dos emergentes na pirâmide social têm basicamente os mesmos enredos: o sujeito era desprezado na época em que era pobre, mas passa a ser valorizado socialmente quando melhora sua condição econômica.

Engajamento social

Todavia, o aumento do padrão de consumo, apregoado tanto pela grande mídia brasileira quanto pela propaganda governamental como a principal característica da “nova classe média”, já apresenta efeitos colaterais. De acordo com o estudo “Perfil do consumidor com e sem dívidas no Brasil”, realizado em parceria entre a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), quase metade (47%) dos consumidores brasileiros inadimplentes pertence à “nova classe média”.

Além do mais, a “nova classe média”, mesmo sendo decisiva nas eleições de dois governos (supostamente) de centro-esquerda, possui, paradoxalmente, ideias reacionárias, inerentes à direita política. Constatações empíricas, pesquisas de opinião e trabalhos acadêmicos apontam que os indivíduos que compõem a “nova classe média” são, em sua maioria, contrários a várias políticas progressistas, como a legalização das drogas ilícitas, a despenalização do aborto, a liberação da eutanásia, a regulamentação da prostituição e a união civil entre pessoas do mesmo sexo e, em contrapartida, são favoráveis à pena de morte e à redução da maioridade penal. Sendo assim, a nova classe média, que ao ascender socialmente poderia contribuir para construir um país melhor, prefere se limitar ao consumo desenfreado e à completa alienação política.

Por outro lado, seria extremamente inócuo (e até injusto) exigir engajamento social de indivíduos formados pelo péssimo sistema público de ensino, por faculdades particulares caça-níqueis, e que, não raro, são telespectadores de programas de auditório, novelas e reality shows. Infelizmente, mais um contexto de grande ascensão econômica no Brasil não foi acompanhado por análogo processo de conscientização coletiva. Lastimável realidade.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG