Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Violência como epidemia

Aos poucos, a mídia vai deixando transparecer a preocupação de grande parte da sociedade com a violência, que há muito tempo assumiu foros de epidemia no país. Não é um exagero: a palavra “epidemia” inscreve ao pé da letra, etimologicamente, o sentido de algo que incide diretamente, por irradiação ou contágio, “sobre o povo” (epidemos, em grego). Diferentemente dos atos anômicos, que tipificam a criminalidade existente em todo e qualquer região do mundo, a epidemia designa o caráter sistemático e, às vezes, inapelável de um fenômeno, capaz de mobilizar as disposições de cuidado público.

A violência, por outro lado, é bem mais obscura como conceito porque abrange uma série extensa de atos negativamente conotados, que reivindicam uma especificidade semântica para evitar a confusão com “força” (vis, em latim) e “agressividade”. Para resumir, pode-se aceitar que força seja um princípio de ação e energia contida, enquanto violência é o desencadeamento ilegal da força com o objetivo de atingir corporalmente uma pessoa. Considerando-se que a violência seja uma unidade artificial para uma série de atos, há quem sugira falar-se de “violências”: homicídios, roubos a mão armada, estupros, lesões corporais etc.

A vítima de uma violência é sempre o ser humano, embora seja admissível falar de violência contra os objetos, desde que pertençam a um sujeito de direitos. No caso do vandalismo, o direito de propriedade serve de mediação para se caracterizar um ato como violento.

O que haveria de novo na violência que a mídia nacional começa a detectar com cores de epidemia? Para começar, a sistematicidade contagiante de uma sensação de insegurança pública que se observa na quase totalidade dos estados da Federação. Por exemplo, a curta visita de um baiano à sua aprazível terra natal, Salvador. Já na saída à noite com parentes, num bairro de classe média, acontece o motorista aguardar atentamente o sinal do zelador para abrir a portão da garagem e arrancar com o carro. Não se trata da afirmação paranoica de que na rua estaria certamente um assaltante armado à espera, e sim a constatação de que essa possibilidade é real na expectativa de moradores antes convictos da tradicional tranquilidade do bairro.

Herdeiros patrimoniais

Estamos pondo em questão uma cidade que muito conhecemos, cujo cotidiano é vivenciado por um número razoável de parentes e amigos. Mas a realidade que algo semelhante pode ser dito, com maior ou menor ênfase, de quase todas as capitais brasileiras. Aliás, não apenas das capitais, já que, epidemicamente, a insegurança pública e a sua sensação coletiva, disseminam-se nas cidades menores. Parece evidente que essa disseminação acompanhe a trilha da droga, mas esta pode ser apenas o epifenômeno de uma dissolução maior dos velhos laços sociais.

Com causas ainda não perfeitamente visíveis, o fato é que se desfaz pouco a pouco uma imagem de povo nacional cultivada há cerca de um século por mitologias – formas narrativas, lendas, relatos históricos, obras literárias, telenovelas – produzidas para uso interno e externo.

Que imagem? Que povo?

Sem dúvida, a imagem legada pela estrutura do luso-patrimonialismo, de onde provém, desde a fundação do país, uma história sobre a nação brasileira, em que esta aparece caracterizada por traços de uma mesma forma social. Nela, tudo concorreria para a mestiçagem de elementos heterogêneos. E na variedade dos relatos, a solução de compromisso e a transigência, constituiriam um polo de cristalização de identidade nacional.

O patrimonialismo brasileiro é de fato a reinterpretação sócio-político-cultural desse ethos luso de transigência e permeação, transmitido por traços manifestos e latentes na dinâmica das gerações dos sujeitos do patrimônio, perpetuados no poder de Estado como se este fosse uma capitania hereditária. O “jeitinho” e a propalada convivialidade – ao lado das fábulas do “homem cordial”, do “caráter pacífico”, da “consciência não-racista” – são formas socialmente sensíveis dessa reinterpretação.

Gerente de um capitalismo orientado por um Centro externo, o nosso vetusto Estado-Nação, sempre inepto na formulação de um projeto nacional autônomo, continua hoje, como no passado, a gerar boas condições de infraestrutura para os herdeiros patrimoniais, sejam eles os donos do sistema financeiro, dos latifúndios produtivos (um herdeiro, aliás, já se apressou a apresentar-se como “candidato do agronegócio”) ou dos impérios de mídia. As multinacionais também agradecem, claro.

Linha reta

À margem das fabulações nacionais alimentadas pelo monopólio oficial de ideias intitulado “cultura nacional” e hoje coadjuvado pela grande mídia, movimenta-se o país real, cuja história nada tem de pacífica (reveja-se a crônica sanguinolenta das revoltas, da brutalidade do escravismo, da indiferença ao território por parte das elites, das atrocidades dos golpes militares) e cujo povo alterna a alegria visceral com violências inomináveis.

Ora, poderá alguém dizer, tudo isso sempre esteve aí, de maneira mais ou menos encoberta. O q            ue há de novo agora? Talvez um encobrimento da realidade menos eficaz, eis uma resposta viável.

Não se espere daí nenhuma clareza economicista por parte das massas, a exemplo de uma conscientização quanto à fraqueza das políticas macroeconômicas ou quanto à deterioração das contas públicas. Não.

É possível, porém, sentir coletivamente a falência do sistema político-econômico na degradação sistêmica dos serviços públicos, na corrupção sistemática de seus dirigentes, na evidenciação brutal da violência – em todas as suas acepções: físicas, simbólicas e morais – infligida pela ditadura civil-militar à Nação.

Desse sentimento provém a exasperação cidadã que tem redundado em manifestações e depredações. Nenhum desses atos avessos à ordem é cômodo para a tranquilidade e a mobilidade urbanas, mas eles constituem, goste-se ou não, um fato social perturbador.

Outra coisa é a anomia criminal que se alastra. Não se trata de cidadania exasperada, mas pode ser vista como uma linha reta que acompanha paralelamente a da exasperação. Nesta, a degradação dos serviços oferece o buraco da vida pública como pretexto para que ali se instale a sub-humanidade do tráfico, da milícia e dos homicídios cruéis. Aqui, como em doenças, a violência é inegavelmente epidêmica.

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro