Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Analogias

Volto ao tema da relação entre as palavras e as coisas, ou entre os enunciados e os fatos, que são duas faces da mesma medalha.

Estou lendo Saussure com os calouros. Com sua defesa da tese de que uma língua não é uma nomenclatura (isto é, não é “uma lista de termos que correspondem a outras tantas coisas”), ele me faz relembrar que já tratamos dessa questão nas aulas, quando o tema foi ‘linguagem e cultura’. Resumo: em relação a certos sistemas (cores e parentesco são os clássicos), logo se vê que as línguas dividem cada um desses campos de maneiras diferentes. Um efeito é que a tradução, por exemplo, não pode ser automática, porque, muito frequentemente, as palavras de uma língua não correspondem exatamente às de outra.

Para começar, valho-me de um dado que anotei para usos futuros. Em algum momento de uma campanha eleitoral, surgia, no texto, a passagem “e aí Serra trabalhou e…”.

Em uma aula comum, esse exemplo não seria analisado. E, se fosse, não se dedicaria à palavra ‘aí’ – eu aposto. Mas ela é talvez o dado mais interessante. Segundo oDicionário Houaiss, a palavrinha tem onze sentidos. E provavelmente não menciona todos (uma vista no verbete mostra muitas semelhanças, mas não aparece nenhuma caracterização clara desse emprego).

A razão da especificidade desse uso é que se trata de um dos muitos casos nos quais palavras que denotam espaço (é a primeira acepção desse advérbio, segundo o mesmo dicionário e segundo todos sabemos) são empregadas para denotar tempo.

Explico: a primeira função de ‘aí’ é indicar um lugar próximo ao interlocutor e relativamente distante do locutor (‘Como está o tempo aí em Campinas? Aqui (qualquer lugar, menos Campinas) chove muito’).

Ora, naquela propaganda, ‘aí’ significa algo como ‘depois’, ‘então’, mais ou menos como nas narrativas em que os eventos são encadeados por meio dessa palavra: ‘e aí o cara chegou, e aí disseram pra ele que…’. Ou seja: ‘aí’ deixa de indicar um lugar para indicar um tempo, um momento seguinte.

Houaiss não inclui essa acepção específica, nem seus exemplos a ilustram precisamente. Nem sei se é função de um dicionário dar esse tipo de explicação. Talvez não seja. Mas as gramáticas deveriam fazer isso – e elas não o fazem (falo das escolares e normativas, evidentemente). Só põem ‘aí’ na lista dos advérbios.

Casos similares

Talvez o exemplo mais interessante para ilustrar a indicação de tempo ou de espaço com a mesma palavra seja o verbo ‘ir’. O sentido primeiro (aceitemos isso, para efeito de raciocínio) do verbo ‘ir’ é de deslocamento: ‘alguém vai de A a B’ quer dizer que alguém se desloca do ponto A ao ponto B. Trata-se de espaço.

Dizemos também, por exemplo, que a Bandeirantes vai de Piracicaba a S. Paulo. Mas é claro que a rodovia não se desloca: ela começa em uma cidade e termina em outra. Não há sentido de deslocamento nessa oração, mas ainda estamos no domínio do espaço.

Agora, veja-se outro caso: também dizemos que o período colonial vai de 1500 a 1822 (ou a 1808, conforme o ponto de vista). Nesse exemplo, ninguém se desloca, nem se informa sobre dois pontos do espaço, dois lugares extremos. Agora não se trata mais de espaço. Trata-se de tempo. E o verbo é o mesmo.

Aliás, é o mesmo que se emprega também na mais atual forma de expressar o futuro: ‘ele vai sair de casa de tarde’. Há alguma indicação de tempo dependente de ‘ir’? Mistério…

Consideremos outros casos em que dimensões de espaço e de tempo se ‘misturam’. Podemos dizer, em um texto, que um argumento será apresentado abaixo, mas também que será apresentado mais tarde (ou que foi apresentado acima ou antes). Assim, um texto está sendo considerado como um espaço, em um caso, e como se tivesse uma dimensão temporal, no outro. Uma explicação meio óbvia: um texto de fato ocupa um espaço (página ou páginas), pelo menos o texto escrito; e é produzido e recebido em uma dimensão temporal (gasta-se um tempo nessas operações).

Outro caso: a função de ‘até’ que pessoalmente acho mais interessante é a de anteceder o argumento mais forte que se apresenta em defesa de uma tese qualquer. Se se fala de um time de futebol que perdeu ‘até para o Ibis’, implica-se que perder para o Ibis é o cúmulo a ruindade. Quem propôs esse tipo de análise foi Oswald Ducrot, em sua teoria conhecida com semântica argumentativa.

Voltemos um pouco: ‘até’ indica um limite no espaço (foi até a chácara / o terreno dele vai até o rio). Mas também indica um limite no tempo (a reunião vai até as 15hs / o mandato vai até o final do ano). Nisso, é como o verbo ‘ir’.

Mas é até (!) mais interessante verificar que indica uma espécie de limite argumentativo, ou seja, a última coisa que parece aceitável colocar numa lista, seja positiva, seja negativa. Se digo que alguém sabe francês, inglês e até alemão, dou a entender que saber a última língua é um argumento mais forte do que saber as outras (para uma certa conclusão, que pode variar: fulano é dedicado, língua são difíceis, umas mais que as outras etc.). Se digo que alguém lê poemas, ‘até os concretos’, dou a entender que este é o mais forte argumento (um limite) para convencer o interlocutor de que fulano é um sujeito incomum.

Deixo para o leitor a avaliação de um imaginário sobre como devem ser as prisões brasileiras, citando o final de uma reportagem sobre ‘privilégios’ de um preso na penitenciária da Papuda, no Distrito Federal: uma vistoria teria descoberto que a cela dispõe “até de chuveiro elétrico”.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas