Na época, o telegrama de Roberto Carlos ao então presidente José Sarney teve repercussão, mas é oportuna agora sua publicação na íntegra pelo blog do jornalista Mário Magalhães. Lá está com todas as letras: “Cumprimento Vossa Excelência por impedir a exibição do filme ‘Je vous salue, Marie’, que não é obra de arte ou expressão cultural que mereça a liberdade de atingir a tradição religiosa de nosso povo e o sentimento cristão da Humanidade. Deus abençoe Vossa Excelência. Roberto Carlos Braga.” O diretor do filme, o franco-suíço Jean-Luc Godard, era ninguém menos do que um dos principais representantes da Nouvelle Vague e autor de uma obra, de fato, polêmica, mas respeitável.
Era o começo da Nova República, que vinha substituir a ditadura. Menos de um ano antes, no dia 29 de junho de 1985, um ato público no Teatro Casa Grande, no Rio, reuniu cerca de 700 intelectuais e artistas para ouvir o ministro da Justiça de Sarney, Fernando Lyra, anunciar: “Está extinta a censura no Brasil.” E declarar que o documento que ele recebera, elaborado por Chico Buarque, Antônio Houaiss, Ziraldo, Dias Gomes, entre outros, era a “Lei Áurea da Inteligência Brasileira”. Foi uma festa da cultura, um momento de regozijo como não acontecia havia 21 anos. Portanto, pode-se imaginar a reação, meses depois, à interdição do filme. O novo presidente tinha como álibi o fato de que fora pressionado pela ala mais conservadora da Igreja. Mas, e o rei?
Torre de marfim
Em artigo na “Folha de S.Paulo’’ de 2 de março de 1986, Caetano Veloso falou da “burrice de Roberto Carlos” e acrescentou que o telegrama saudando a censura a “Je vous salue, Marie’’ (em português, “Eu vos saúdo, Maria”, ou “Ave Maria”) “envergonha nossa classe”. Daí a conclamação: “Vamos manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam.”
O episódio ajuda a desmontar alguns mitos régios, como o de que o rei só foi favorável à proibição das biografias não autorizadas para preservar sua privacidade. Há 28 anos, ele estava preocupado também com a privacidade da Virgem Maria, mesmo sabendo que o filme de Godard era uma obra de ficção. O outro mito é o da imagem de um artista afastado do poder, trancado numa torre de marfim, sem sujar as mãos com a impureza da política. O novo livro de Paulo César de Araújo [“O réu e o rei — minha história com Roberto Carlos, em detalhes”], autor da biografia proibida, mostra que ele vai aonde lhe convém, ou seja, aonde pode defender a censura: Senado, Câmara, Judiciário e até ao Planalto, como fez recentemente ao ser recebido pela presidente Dilma, que, segundo a imprensa, ficou “visivelmente emocionada” por abraçá-lo.
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Zuenir Ventura é colunista do Globo