Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Piketty está longe de ser radical

O livro do economista francês Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”, está dando bastante o que falar. O economista americano Paul Krugman, num artigo na revista “New York Review of Books”, descreveu o livro como um “chamado às armas” para aqueles que desejam “limitar o poder crescente da riqueza herdada”. Já os analistas conservadores dos Estados Unidos criticaram o “marxismo brando” de Piketty (nas palavras de James Pethokoukis, do Instituto Americano para o Empreendimento, AEI) e a alusão óbvia, no título do livro, à própria obra de Marx: “O Capital”.

Em mais de 600 páginas repletas de dados, Piketty argumenta que o capitalismo cria um círculo vicioso de desigualdade porque a taxa de retorno sobre os ativos é maior, no longo prazo, que o crescimento econômico em geral. Essa divergência, diz ele, ameaça transformar a sociedade moderna numa ordem neofeudal – um cenário que ele gostaria de evitar através da imposição de um imposto mundial sobre a riqueza (e não sobre a renda).

O quão radical é Piketty? Na verdade, não muito. Com seu sotaque, erudição fácil, camisa desabotoada e um cabelo preto e espesso, ele é o protótipo do intelectual francês, mas nem todo intelectual francês é um radical. Marxistas bem-intencionados ainda perambulam pela França e é difícil tomar o educado Piketty por alguém dessa classe. Talvez seja por isso que ele não esteja causando tanta agitação no debate público na França como nos EUA e outros países.

Piketty é um intelectual público bastante conhecido na França. Ele escreve uma coluna no jornal de inclinação esquerdista “Libération” e foi um alto assessor econômico da candidata a presidente Ségolène Royal, nas eleições de 2007. Mas o livro dele não é um fenômeno em Paris. Na verdade, a maioria das notícias sobre a obra fala mais do sucesso inesperado que teve no resto do mundo.

A razão para essa diferença de impacto é bem simples. O que alimenta as discussões e as vendas é a polêmica. E a ideia de que o capitalismo produz uma desigualdade cada vez maior e corrói os fundamentos da ordem social é controversa nos EUA, mas, na França, é justamente o oposto: um dogma religioso. No fim das contas, ninguém consegue ser profeta na sua própria terra.

Há provavelmente outra razão pela qual Piketty não é tão influente na França como poderia. Ele é um pensador sério. A França é considerada singular por seu amor aos intelectuais públicos, mas talvez seja mais correto dizer que, no fundo, trata-se de um amor pelo amor aos intelectuais públicos. Na verdade, vários dos intelectuais franceses mais proeminentes de hoje são superficiais e costumam falar sobre coisas que conhecem muito pouco.

Na França, muitos economistas famosos vendem livros e aparecem em programas de entrevistas na televisão. O que a maioria tem em comum é não ter um diploma em economia ou não ter nenhum trabalho econômico analisado por colegas. Eu mesmo não sou economista – mas já fui apresentado como um num programa de notícias na França. Piketty, por sua vez, é um notável economista acadêmico, o que, na França, prejudica sua credibilidade como economista.

Percepção conservadora

Não deixa de ser um cômico lembrete das diferenças entre a França e EUA o fato que, embora as ideias de Piketty o coloquem à esquerda do espectro político americano, na França ele às vezes soa como um conservador. Ele se opôs à última medida do governo socialista francês, as famosas 35 horas de trabalho por semana, e defendeu cortes nos impostos trabalhistas. No fundo, Piketty continua sendo um personagem muito comum no debate político atual: um economista neoliberal que vê muitas virtudes nas forças do mercado, mas é a favor de uma redistribuição promovida pelo governo que alivie um pouco os excessos do mercado.

Nos círculos parisienses, dizem que Piketty despreza o presidente socialista François Hollande e o vê como um mero oportunista. Alguns dizem à boca pequena que a inimizade se deve às relações supostamente tensas entre Hollande e sua ministra da Cultura, Aurélie Filippetti, que já foi namorada de Piketty. No mundo bizantino do Partido Socialista francês, intrigas e sexo quase sempre andam de mãos dadas.

Alguns no pequeno círculo dos economistas respeitados da França dizem que Piketty pode ser melhor compreendido através de sua história pessoal. Ele vem de uma família da classe trabalhadora. Seus pais foram membros ativos do radical partido trotskista Lutte Ouvrière (Luta dos Trabalhadores). Após concluir o ensino médio numa escola pública, aos 16 anos, ele foi aceito na Ecole Normale Supérieure, a mais seletiva das superseletivas grandes faculdades francesas. Ele terminou o doutorado aos 22 anos, tendo recebido um prêmio da Associação Francesa de Economia pela melhor tese do ano. O tema: a redistribuição da riqueza.

Em suma, Piketty é algo cada vez mais raro: um produto puro da meritocracia francesa, um jovem da classe trabalhadora que frequentou escola pública, conseguiu entrar numa faculdade de elite e acabou num área prestigiada do serviço público (ele cofundou e liderou a Escola de Economia de Paris). Esse é o modelo responsável por reviver a França no pós-guerra, mas que agora está em frangalhos.

Não há dúvida que, à medida que Piketty galgou a hierarquia da elite francesa, ele não pôde deixar de notar que a maioria das pessoas a seu redor tinha pais e avós (e, em muitos casos, avós dos avós dos avós) que haviam sido muito mais privilegiados que os seus. E, então, ele começou a tentar juntar o que sua formação cultural esquerdista havia lhe ensinado ao que encontrou nos modelos econômicos e descobertas empíricas.

Piketty está certo sobre algumas coisas e errado sobre outras, mas sua visão de mundo está longe de ser radical. Suas ideias poderiam ser abraçadas por alguém de direita insatisfeito com a desigualdade e receoso que as enormes diferenças na riqueza das pessoas, se não forem combatidas, possam comprometer a ordem social. De fato, em meio a todo o falatório sobre as ideias supostamente revolucionárias de Piketty, essa percepção conservadora poderia ser sua contribuição mais duradoura para o debate fora da França.

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Pascal-Emmanuel Gobry é escritor, empresário e mora em Paris