Não é de hoje que as biografias não autorizadas dividem opiniões de artistas, políticos e leitores. Desde que Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil se uniram para criar a associação Procure Saber, presidida pela empresária Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano, o assunto tomou grandes proporções e não saiu de pauta. O grupo é composto por autores, artistas e pessoas ligadas a música e, de acordo com os integrantes, é dedicado a estudar e informar a população sobre regras, leis e funcionamento da indústria da música no Brasil.
Apesar desses membros serem conhecidos e exaltados por pautarem, na época da ditadura, suas músicas em críticas ao governo militar e à defesa da liberdade e igualdade entre os membros da sociedade, hoje eles são os mesmos que, preocupados com o direito à privacidade e à preservação da intimidade, lutam na direção contrária: defendem o controle do conteúdo das biografias, já que, para que elas possam ser comercializadas, precisam do aval do biografado – quando vivo – ou da família.
Minha fama de mau
Um dos episódios mais conhecidos de censura prévia a biografias aconteceu em 2007, quando Roberto Carlos conseguiu proibir a circulação de sua biografia Roberto Carlos em Detalhes, escrita por Paulo Cesar Araújo, resultado de 16 anos de pesquisa e centenas de entrevistas feitas pelo autor. Quando o livro já estava na boca do povo e atingia as listas dos mais vendidos no país, a editora Planeta foi obrigada a retirá-lo de circulação.
Depois de alguns anos, o autor, que travou com o ícone da Jovem Guarda uma das mais desgastantes e comentadas guerras judiciais do país, resolveu contar todos os detalhes da polêmica em um livro lançado semana passada pela Companhia das Letras. Em O réu e o rei, Paulo Cesar Araújo trata dos bastidores do processo, de música, censura e da discussão em torno da liberdade de expressão em nosso país. Nem Roberto Carlos nem seus advogados foram avisados do lançamento do livro, estratégia para evitar que o título fosse barrado. Em O réu e o rei, Araújo diz que, segundo RC, o biógrafo é “um usurpador da história alheia”.
Trechos do livro
“Você escreveu que eu participei de orgias com garotas menores no apartamento de Carlos Imperial! Você me chamou até de covarde neste livro!’ Nesse momento tive certeza de que o cantor não havia lido a biografia.”
“Sem mais nada a acrescentar, o juiz colocou então uma caneta e a folha com o termo de conciliação sobre a mesa. (…) Depois de mais de cinco horas de reunião, eu já estava exaurido, emocionalmente arrasado e sem ânimo para dizer ou ouvir mais nada. Acusado por Roberto Carlos e seus advogados, pressionado pelo juiz, pelos promotores e abandonado pela editora, a minha única vontade era sair daquela sala o mais rápido possível.”
Ilegal, imoral ou engorda?
A luta entre a liberdade de expressão e controle da informação pode acabar em breve. A câmara aprovou recentemente um projeto de lei que libera a venda de biografias não autorizadas. Assim que passar pelo Senado, o texto seguirá para sanção presidencial. “A história de uma nação é contada também pela história das pessoas. A censura prévia está inibindo as produções teatrais, cinematográficas e de livros que se destinam a contar a história de pessoas que precisam ser conhecidas pela sociedade”, diz o deputado Newton Lima (PT-SP), autor do projeto.
De acordo com ele, a constituição brasileira garante em vários artigos a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica, de pesquisa, de manifestação do pensamento, independente de censura ou licença. “O Brasil é o único país livre no mundo onde os autores de obras biográficas estão sujeitos à censura prévia”, defende. Por isso, a aprovação da lei significa colocar o Brasil no mesmo patamar de todos os países livres do mundo, em que não é necessária autorização de quem quer que seja para a elaboração de uma obra.
Pellegrini X Leminski
Munidos de argumentos como o direito à privacidade e o lucro que os escritores e as editoras alcançam em detrimento da vida pessoal dos biografados, alguns artistas defendem que a lei da censura prévia de biografias continue vigorando. Contrariando a legislação, o vencedor do Jabuti, Domingos Pellegrini, lançou Minhas lembranças de Leminski, apesar da única biografia publicada sobre o poeta ter sido barrada por abordar o suicídio do irmão de Leminski. A família não gostou. “[O livro de Pellegrini] Não se trata de uma biografia, mas de um recorte da relação entre os dois escritores profundamente ficcionalizada, pois as falas atribuídas ao Paulo foram criadas pelo autor do livro” – comenta Alice Ruiz, viúva de Paulo Leminski.
Pellegrini foi amigo do poeta por mais de 20 anos e, segundo a escritora, frequentava a casa do casal regularmente, mas, na biografia, “parecia que ele queria resolver uma briga de ego com Leminski”. Por achar que a obra apresentava certos exageros e interpretações distorcidas de quem tinha sido o poeta, Alice se recusou a autorizar a publicação da obra, mas, apesar disso, o autor divulgou o texto na internet.
A editora Geração Editorial se interessou pela obra e decidiu correr o risco e publicar. “Leminski morreu de cirrose e todo mundo sabe que ele bebia, mas no livro parece que ele não tinha um minuto de sobriedade. E a nossa casa, onde nós o acolhemos com tanto carinho, foi apresentada como desconfortável e pobre. Para mim ficou claro que as biografias dizem muito mais sobre o biógrafo do que sobre o biografado”, finaliza.
Em entrevista ao Zero Hora, Pellegrini disse que provavelmente seu livro foi barrado porque a família queria uma biografia mais “chapa-branca”, que falasse menos sobre o alcoolismo – algo que o autor acredita ser profundamente desonesto. “Pelo menos ficou claro para mim que as biografias dizem muito mais sobre o biógrafo do que sobre o biografado”, finaliza Alice.
Caso a lei que libera a venda das biografias sem censura prévia for aprovada, nem tudo está perdido para os biografados: se houver algum tipo de abuso na obra, a pessoa retratada dispõe de um procedimento judicial para pedir a retirada do trecho ofensivo das edições futuras. “O projeto que apresentei não autoriza ninguém a escalar o muro da casa de uma celebridade, nem grampear o telefone das pessoas públicas para escrever uma biografia. O autor da obra deve realizar sua pesquisa a partir de documentos que se tornaram públicos”, diz o deputado.
Ainda não há data definida para que o PL entre na pauta da presidência.
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Nathália Bottino é jornalista do iba