Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Seus dados pessoais são meus!

Num passado não tão longínquo, uma pessoa qualquer poderia não autorizar que seu nome e número constassem do catálogo telefônico. Ela se manteria anônima, oculta. Não se esconderia por completo, é verdade, já que seu aparelho poderia tocar a qualquer momento, mas evitaria ligações indesejadas de quem a localizasse na lista. Àquele tempo, não estar nas páginas amarelas não significava propriamente censura de informação, mas proteção de dados pessoais.

Ok, agora salte alguns anos e altere um pouco a paisagem. Imagine que outra pessoa igualmente reservada decida não figurar na principal “lista telefônica” do mundo, o Google. Ela não quer ser encontrada, e deseja simplesmente que o buscador ignore os endereços na internet que trazem informações sobre ela. Estará o nosso personagem protegendo a sua privacidade ou atentando contra o direito de outras pessoas de acessar informações que lhe convenham?

Artificial, o exemplo acima não se restringe aos limites da ficção, pois o dilema que opõe proteção de dados pessoais à liberdade de informação ganha contornos mais decisivos em nossos dias. Em maio passado, por exemplo, a Corte Europeia de Justiça deu uma decisão histórica contra o Google, defendendo o direito de um cidadão espanhol de “ser esquecido” no mecanismo de busca. A sentença vale para 28 países, abre um precedente importante e impõe uma derrota a um gigante da web. Tanto é que o buscador precisou adotar medidas para se adequar.

Limites difusos

A busca do equilíbrio entre privacidade e liberdade de informação não afeta apenas as empresas de tecnologia. Deveria preocupar também as de comunicação em geral e as de jornalismo, em específico. Afinal, de forma ampla, interessa a esse setor que o máximo de informações estejam acessíveis, pois a matéria de qualquer noticiário reside também em dados brutos. Entretanto, as coisas mudaram muito nos últimos tempos. Governos usam agências de inteligência para espionar cidadãos – suspeitos ou não – dentro e fora de suas fronteiras.

Empresas coletam dados de navegação de usuários e não se sabe o uso de fazem disso. Por outro lado, ativistas e organizações não-governamentais reivindicam maior transparência de agentes públicos e da iniciativa privada.

Invadir ou não a privacidade alheia não é um dilema ético recente. Antes das extraordinárias possibilidades tecnológicas atuais, repórteres e editores discutiam as condições para a violação de um direito amplamente reconhecido. Até mesmo os códigos de ética admitem a intromissão desde que ela satisfaça ao “interesse público”. Aliás, esta expressão tem poderes mágicos, pois sob os seus domínios é possível violar uma quantidade incrível de cláusulas de cuidado.

Outro componente atualiza o dilema: vivemos tempos de intensa autoexposição nas redes sociais, uma flagrante evasão de privacidade. Qualquer minúscula conquista diária merece uma celebração pública no Facebook, o simples fato de estar vivendo e respirando já é motivo para uma selfie no Instagram, e por aí vamos. Na ânsia de ser aceito em grupos sociais, o usuário mostra sua casa, a família e os colegas do trabalho. Conta no blog o que sente quando algo lhe acontece, mesmo que o substrato emocional seja rancor, ressentimento, inveja e outras mesquinharias. Atrás do teclado, revela particularidades que não teria coragem em situações presenciais. A autoexposição é tamanha que resta uma pergunta amarga: a que privacidade tem direito aquele que escancara a própria intimidade, devassa o passado e chega a comprometer o seu futuro?

Tentáculos invisíveis

É preciso lembrar que a privacidade é um direito consagrado mundialmente, e extensivo a todos. Claro que pessoas públicas devem entender que seus redutos particulares são corroídos pela fama e notoriedade, bem como pela responsabilidade e influência que exercem em escala social. Artistas podem se contrapor ao assédio que sofrem de jornalistas e outros curiosos, mas tais queixas nem sempre surtem efeito. Políticos e agentes públicos reclamam igualmente, mas repórteres se fiam no “interesse público” para continuar a morder calcanhares. Se as partes não chegam a um acordo, resta à justiça arbitrar – veja-se o caso do espanhol a ser esquecido pelo Google…

As tensões envolvendo privacidade e liberdade de informação tendem a aumentar de forma exponencial como resultado do que se chamou de era dos grandes dados. Com o Big Data, fica espalhada uma quantidade monstruosa de informações, algo inédito na história da humanidade. De características populacionais à contabilidade de empresas, passando por bibliotecas infinitas de códigos genéticos e coleções de imagens públicas e privadas, tudo ou quase tudo tende a alimentar bancos de dados acessíveis.

Um exemplo: uma única rede social – o Facebook – reúne fotos, perfis, geolocalização e hábitos de mais de um bilhão de pessoas. É conteúdo que supera o rastreado por qualquer agência de espionagem no planeta! Um acervo como este interessa a muitas empresas, e esses dados são compartilhados, comercializados e usados para oferecer anúncios publicitários, identificar padrões de consumo e obter outras vantagens.

As empresas vão argumentar que formulam políticas de privacidade e que zelam pelos dados extraídos de seus clientes, mas quem há de provar isso? Os dados pessoais do usuário deixaram de pertencer a ele. As políticas dos sites são simplesmente ignoradas pelos internautas, seja por falta de clareza, preguiça, comodismo ou pressa. Não bastasse, sistemas informatizados são desenvolvidos para organizar informações dispersas, criando uma situação que beira à ficção científica: os algoritmos sabem mais das pessoas do que elas mesmas.

Desta forma, quando acessa o portal de notícias, o sujeito encontra na página de entrada notícias sobre seu time de futebol, previsões astrológicas de seu signo e climáticas de sua cidade, entre outros produtos customizados. Pode ser conveniente, é verdade, mas os filtros são usados apenas para oferecer noticiário dirigido? As empresas jornalísticas respeitam a privacidade de seus usuários quando enviam mensagens de texto a celulares de forma não autorizada? Deixam de compartilhar os dados pessoais com seus anunciantes ou parceiros de negócios? Protegem e guardam essas informações de forma inviolável? Difícil responder…

A privacidade é, sim, um direito amplo, mas é importante não esquecer também que se trata de uma invenção social, não um atributo da natureza, um filamento de cromossomo. Isto é, os seres humanos criaram o entendimento de que existe uma dimensão íntima que goza de um respeito maior, de cuidados adicionais. Na era dos selfies, queremos mesmo renunciar ao que sobrou do que chamávamos privacidade? A transparência deve ser total e acachapante, custe o que custar? Devemos confiar nossas memórias e histórias particulares a empresas ineditamente poderosas? Governos estariam mais aptos a garantir tal proteção? O anonimato e a invisibilidade são pecados atuais imperdoáveis? É possível alcançar um equilíbrio que assegure ser deixado em paz e permitir que jornalistas e cidadãos acessem informações de incontestável interesse coletivo?

Necessariamente, os usuários precisaremos enfrentar essas questões. Não é nem um pouco prudente esperar que o maior buscador da internet venha resolvê-las; nem que algum governo ou corte judicial decidam garantir nosso direito de respondê-las. Não é momento de delegar.

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Rogério Christofoletti é jornalista, professor de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS