Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A máquina de fumaça da guerra

Quando escolhi revelar informações secretas em 2010, o fiz por amor ao meu país e pelo sentido de dever para com o próximo. Agora, estou cumprindo uma sentença de 35 anos de detenção por essas revelações não autorizadas. Entendo que minhas ações transgrediram a lei.

Contudo, as preocupações que me motivaram não foram resolvidas. Agora que o Iraque irrompe em guerra civil e os Estados Unidos novamente cogitam uma intervenção, esse assunto inacabado deveria dar nova urgência à questão de como os militares americanos controlaram a cobertura da mídia do seu envolvimento prolongado no Iraque e no Afeganistão. Creio que os limites atuais sobre a liberdade de imprensa e o excesso de sigilo do governo impossibilitam que os americanos compreendam completamente que está acontecendo nas guerras que financiamos.

Se você acompanhava as notícias durante as eleições iraquianas de março de 2010, talvez se lembre de que a imprensa americana foi inundada de reportagens declarando as eleições como um sucesso, repletas de casos positivos e de fotografias de mulheres orgulhosamente exibindo os dedos manchados de tinta. As entrelinhas diziam que as operações das forças militares americanas haviam tido êxito na criação de um Iraque estável e democrático.

Mas as pessoas que foram enviadas para lá tinham plena consciência de uma realidade mais complicada.

Os relatórios militares e diplomáticos que passaram pela minha mesa detalhavam uma repressão brutal contra os dissidentes políticos por parte do Ministério do Interior do Iraque e da polícia federal, em defesa do primeiro-ministro Nouri Al-Maliki. Os detidos quase sempre eram torturados, ou até mesmo assassinados.

“Acesso especial”

No começo de 2010, recebi ordens para investigar 15 pessoas que a polícia federal havia detido por suspeitas de imprimir “material anti-iraquiano”. Descobri que essas pessoas não tinham ligação alguma com o terrorismo; elas estavam publicando uma crítica acadêmica contra a administração de Al-Maliki. Encaminhei essa descoberta para o comandante no leste de Bagdá. Ele respondeu que não precisava dessas informações; pelo contrário, eu deveria auxiliar a polícia federal a localizar mais gráficas “anti-iraquianas”.

Fiquei chocado pela cumplicidade dos nossos militares com a corrupção dessa eleição. No entanto, esses detalhes profundamente incômodos voaram abaixo do radar da mídia americana.

Não foi a primeira (ou última) vez que me senti obrigado a questionar a maneira com que conduzíamos a nossa missão no Iraque. Nós, analistas de inteligência, e os oficiais a quem nos reportávamos, tínhamos acesso a um resumo minucioso da guerra que poucos outros tinham. Como poderiam aqueles com o poder de decisão do alto escalão dizer que o público americano, ou até mesmo o Congresso, apoiava o conflito, quando esses não sabiam metade da história?

Entre os muitos relatórios diários que eu recebia por e-mail enquanto trabalhava no Iraque em 2009 e 2010 houve uma instrução interna de relações públicas que listava as notícias recém-publicadas sobre a missão americana no Iraque. Uma das minhas tarefas regulares era fornecer ao resumo das relações públicas, lido pelo comando no leste de Bagdá, uma descrição em uma única sentença de cada questão tratada, complementando a nossa análise com a inteligência local.

Quanto mais eu fazia essas comparações diárias entre as notícias nos EUA e os relatórios militares e diplomáticos a que tive acesso como analista, mais consciente ficava da discrepância. Em contraste às instruções sólidas e variadas que criávamos em terra, as notícias disponíveis ao público eram repletas de especulações obscuras e simplificações.

Um indício dessa discrepância encontra-se nos relatórios de relações públicas. Perto do topo de cada informe oficial encontra-se o número de jornalistas incorporados ligados às unidades das forças militares americanas em uma zona de combate. Durante o meu destacamento, nunca via essa contagem ultrapassar 12. Ou seja, em todo o Iraque, que continha 31 milhões de habitantes e 117.000 tropas americanas, não mais de uma dúzia de jornalistas americanos fazia a cobertura das operações militares.

O processo de limitar o acesso da imprensa a um conflito começa quando um repórter se inscreve para a condição de incorporado. Todos os repórteres são cuidadosamente verificados pelos oficiais de relações públicas militares. Esse sistema está longe de ser imparcial. Não é de surpreender que repórteres que já tinham relacionamentos com os militares têm maior probabilidade de conseguir acesso.

O que é menos conhecido é que os jornalistas que os contratantes militares classificam como produtores de cobertura “favorável”, baseado no histórico de reportagens, também recebem a preferência. Essa classificação terceirizada do “favoritismo” atribuída a cada inscrito é usada para eliminar aqueles julgados suscetíveis à produção de uma cobertura crítica.

Os repórteres que conseguiram obter a condição de incorporado no Iraque então tiveram de assinar um acordo com as “regras básicas” para a mídia. Os oficiais de relações públicas disseram que isso era para proteger a segurança operacional, mas também permitia que eles encerrassem a condição de incorporado de um repórter sem recurso.

Já houve inúmeros casos de encerramento do acesso de repórteres após uma reportagem controversa. Em 2010, o saudoso repórter da revista Rolling Stone Michael Hastings perdeu o acesso após uma reportagem de uma crítica contra a administração Obama feita pelo general Stanley A. McChrystal e pela sua equipe no Afeganistão. Um porta-voz do Pentágono declarou: “Incorporados são um privilégio, não um direito”.

Se a condição de incorporado de um repórter for encerrada, tipicamente, ele ou ela entra na lista negra. Esse programa de limitar o acesso da imprensa foi contestado judicialmente em 2013 por um repórter freelancer, Wayne Anderson, que alegou ter cumprido o seu acordo, mas foi desligado após publicar reportagens desfavoráveis sobre o conflito no Afeganistão. A sentença do seu caso sustentou a posição dos militares de que a constituição não protegia o direito de ser um jornalista incorporado.

O programa de repórter incorporado, que continua no Afeganistão e onde quer que os Estados Unidos enviem tropas, é profundamente informado pela experiência militar de como a cobertura da imprensa mudou a opinião pública durante a Guerra do Vietnã. Os controladores de acesso das relações públicas têm poder demais: os repórteres naturalmente temem que seus acessos sejam cortados, então tendem a evitar reportagens controversas que poderiam levantar bandeiras vermelhas.

O programa existente força os jornalistas a concorrerem entre si por “acesso especial” às questões vitais de política externa e interna. Muito frequentemente, isso produz reportagens que bajulam quem tem o poder de decisão no alto escalão. Uma consequência é que o acesso do público americano às informações fica restrito, o que deixa a opinião pública sem ter como avaliar a conduta dos oficiais americanos.

Aspecto crucial

Os jornalistas têm um papel importante a desempenhar exigindo reformas do sistema de incorporação. O favorecimento das reportagens anteriores dos jornalistas não deveria ser um fator. A transparência, garantida por um órgão fora do controle dos oficiais de relações públicas, deveria governar o processo de credenciamento. Um órgão independente composto por membros dos funcionários das forças militares, veteranos, civis do Pentágono e jornalistas, poderia equilibrar a necessidade de informações com as necessidades militares de segurança operacional.

Os repórteres deveriam ter acesso oportuno às informações. Os militares poderiam fazer mais para possibilitar a rápida desclassificação das informações que não prejudiquem as missões militares. Os Relatórios de Atividades Significativas dos militares, por exemplo, fornecem um resumo rápido das ocorrências como atentados e feridos. Frequentemente confidenciais por padrão, esses resumos poderiam ajudar jornalistas a reportar fatos com mais precisão.

Pesquisas de opinião indicam que a confiança do público americano em seus representantes eleitos está em uma baixa histórica. Melhorar o acesso dos meios de comunicação a esse aspecto crucial da vida nacional – aonde os EUA enviam os homens e mulheres de suas forças armadas – seria uma etapa poderosa no sentido de restabelecer a confiança entre os eleitores e os representantes.

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Chelsea Manning é ex-analista de inteligência do Exército dos Estados Unidos vazou milhares de documentos para o site WikiLeaks. Ela escreveu esse artigo para o New York Times