Sou linguista de formação e me incomodo cada vez que vejo dúzias de replicações de uma postagem que ridiculariza cartazes e pichações que trazem em algum “erro” (as aspas são propositais, veremos o porquê depois). Tais “erros” normalmente são expressos pela materialização de algum pecado ortográfico ou alguma impropriedade de concordância verbal ou nominal. A brincadeira ganhou proporções que eu jamais imaginaria. Até grandes jornais (como a Folha de S.Paulo), que já não são há tempos o exemplo mais conservador de nossa última Flor do Lácio – Olavo Bilac que me perdoe – entraram na brincadeira. Outros exemplos de tal preconceito seriam um respeitado site de entretenimento (Catraca Livre) que divulgou um pretenso jogo de gramática de uma editora paulistana que pouco faz além de evidenciar o desconhecimento de expressões gramaticais fossilizadas e curiosidades totalmente distantes do cotidiano.
Existe muito mais aí do que uma brincadeira. Estamos, na verdade, chancelando a ideia de que existem formas de falar que são melhores que outras, formas de escrever que são merecedoras de perpetuação ao contrário de outras, que merecem ser extintas. Junto com isso, está a ridicularização de quem não domina determinada variação linguística assumida como padrão. Entendo que academicismos não são muito bem vindos em blogs. Esse foi o último, prometo ser direto daqui para frente, nada de ficar citando mil estudos, usar termos técnicos incompreensíveis. Tratarei a questão com a mesma informalidade que a trataria em uma mesa de bar, usando exemplos do meu próprio cotidiano.
O que é o português? Responda-me rápido, quem definiu o português? Por que bregela é mais errado que berinjela? Perguntas bem difíceis, acho que os dois (ou talvez mais) anos que estudei sociolinguística, nos meus idos tempos de graduação na PUC-SP, não oferecem uma resposta direta. Não pela incapacidade do professor, que sempre foi brilhante, mas porque ela não é simples mesmo, nunca foi. Tentarei resumir com minhas próprias palavras em um período simples, assertivo e sem modalização: a língua portuguesa não existe. Que susto! Como assim?
Fenômeno geral
Na verdade, o que existe é uma abstração a partir do que as pessoas falam. Uma língua se faz nas ruas, com o falar das pessoas em suas expressões naturais e cotidianas. É a partir disso que algum estudioso determinou que, em uma dada língua, a estrutura é assim ou assado. Nossos falares são múltiplos, variam de acordo com sexo, idade, localização geográfica, influências externas, classe social e, apesar de muitos não dizerem, acredito claramente que a orientação sexual também é algo a ser levado em conta.
Felizmente, uma língua não nasce de gramáticas normativas ou pela abstração de alguns ditos eruditos que decidem inventar um idioma. Então, quando dizemos que algo está certo ou errado, está certo ou errado para quem? Levando em conta quais das variáveis que brevemente comentei? Na verdade, quando ridicularizamos um erro de ortografia ou concordância estamos, de fato, indicando que aquela forma de se expressar não se encaixa no que poderíamos definir como “norma culta” ou “norma padrão”. Mas que norma é essa? Quem a definiu? Quais das variáveis ela leva em conta? De novo, uma enxurrada de dúvidas.
A dita norma culta é estabelecida por quem tem o poder cultural e econômico. Esses grupos perpetuam sua forma de falar como a que possui maior prestígio em relação às demais. Assim, quando lemos os gramáticos normativos (que não são linguistas e usam apenas uma das possíveis acepções do termo gramática), lemos pessoas que estão comprometidas com um grupo social que detém esse poder. Esse poder se manifesta em todas as formas de comunicação ditas prestigiosas, tais como televisão, jornais, revistas, livros cartazes, sítios de internet e uma infinidade de gêneros e veículos. E isso não acontece apenas no Brasil, ou na língua portuguesa, falamos de um fenômeno que se dá em qualquer idioma. Por exemplo, em inglês o chamado cockney accent e suas intransponíveis rimas, falado pelas pessoas do East End de Londres, é considerado muito inferior ao RP English, ou received pronunciation, falado pela nobreza, pelos meios de comunicação oficiais (como a BBC), pelos políticos e pelas classes mais abastadas de Londres.
Desmerecimento social
Na verdade, errar o português parece uma noção a ser pensada com carinho. Passei boa parte da minha infância, minha adolescência e o início da fase adulta no bairro do Jaraguá, em São Paulo. No final dos anos 1970, o bairro era uma distante periferia. Seja pela distância, seja pela influência das pessoas que migraram para lá, na sua maioria nordestinos ou descendentes pobres de europeus (sobretudo espanhóis e italianos) o lugar, como qualquer outro, desenvolveu um falar próprio.
Imagine se eu me desafiasse a pedir uma cerveja, ali no bairro, no já saudoso bar do Beto (vulgo Cidade Oculta), seguindo a norma culta, ao pé da letra, teríamos algo do tipo: “Caro José Roberto, dá-me uma cerveja e dois copos limpos, por favor.” Certamente o Beto riria, soltaria um palavrão e diria: “Você já é da casa, mano. Pega lá e me fala o que bebeu que não tem treta.”
Errado, nesse contexto, é usar a norma culta. Ela não tem espaço naquela interação porque as pessoas não a vivem em sua realidade. Usar uma próclise no lugar da ênclise, talvez não ser tão exato nos plurais ou ser menos formal no trato são coisas que me fariam mais aceito naquele contexto. Algo certamente importante.
Nesse sentido, falar ou escrever errado é algo que se relativiza, talvez em uma situação determinada, escapar da norma culta seja a melhor saída. Existem questões políticas relacionadas a tal fato. Uma vez ouvi de uma pessoa bem próxima, que certamente conhece a norma culta: “Eu falo ‘para mim fazer’ porque é assim que falam de onde eu vim. Eu me sinto ligada às minhas raízes quando falo isso.” Classificar um falar como absolutamente errado é negar o status comunicacional de uma variação linguística, além de desmerecer socialmente aqueles que a falam.
A função social da escola
Eu não estou dizendo que a norma culta simplesmente tem de ser abolida. Isso não é possível, a predominância de uma variação sobre a outra é algo real e inevitável. Quem domina os recursos financeiros ou culturais naturalmente se impõe, e isso também se dá pela linguagem.
O papel da escola é ensinar a norma culta. Isso porque ela é um meio de acesso importante. É dominando a norma culta que o acesso à educação superior e aos bens culturais e financeiros se faz possível. Ensinar a norma culta na escola é possibilitar mobilidade social.
Entretanto, isso não pode ser feito de forma a cometer um ou dois pecados. O primeiro seria desmerecer as origens linguísticas de cada um. Nosso falar é parte importante de nossa identidade e nenhum falar é melhor do que outro. É preciso conscientizar que existem níveis de adequação para nossos falares. Eu não posso pedir uma cerveja e um torresmo da mesma forma que participo da arguição de uma tese, ou vice-versa. O segundo pecado seria oferecer uma forma de ensino tão tacanha dessa norma culta que isso torna impossível para o aluno absorver qualquer coisa ali descrita. Como testemunho de profissão, sou formado em Letras (português/inglês) e até hoje não sei por que fui ensinado, durante o ginásio, o que é uma “oração subordinada adverbial causal reduzida de particípio”. Não é imaginável uma pessoa pensar nesse processo classificatório e vazio na hora de escrever. A língua é orgânica. Como dizem autores como Sírio Possenti e Luiz Carlos Travaglia, nosso aluno sofre uma gramática que pouco ajuda a escola a ter sua função social.
E no fim, temos de parar de rir, e deixar de simplesmente repetir preconceitos.
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Rodrigo Esteves de Lima Lopes é doutor em Linguística Aplicada e professor da Universidade Federal da Paraíba