Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia tardou a perceber dimensão do conflito

Não foi fácil para o jornalismo perceber na morte do herdeiro do trono austríaco, Francisco Ferdinando, o início de uma grande epopeia da história humana. O assassinato, estopim da Primeira Guerra Mundial, completou cem anos no sábado (28/6). Embora os jornais do dia seguinte destacassem a notícia, ela foi tratada como o fato restrito que teria sido se a diplomacia não tivesse amplificado o embate a ponto de torná-lo uma guerra mundial.

No dia 29/6, O Estado de S.Paulo deu a notícia com título de apelo local, “O atentado de Serajevo”, pouco acima da metade de sua capa; o Diário de Notícias (Lisboa) atribuiu cunho étnico, com o sobretítulo “O Ódio de Raças”; o Figaro (Paris) fez um título informativo: “Arquiduque herdeiro da Áustria e sua mulher assassinados na Bósnia”. Os três dedicaram um terço de suas páginas.

O New York Times deu mais destaque: meia página. A manchete incluiu a informação de que “jovem bósnio vinga a ocupação de seu país”. O relato dos acontecimentos do dia anterior destaca a decisão equivocada que levou o nobre austríaco, apesar de alertado, a seguir para a morte por tiros depois de escapar de um primeiro atentado, a bomba. Nenhum dos quatro jornais previu a guerra, menos ainda mundial.

Os disparos do bósnio-sérvio Gavrilo Princip poderiam ter dado início apenas a um conflito regional, talvez virasse uma Terceira Guerra dos Bálcãs (após as de 1912 e 13). Mas as negociações que se seguiram, na chamada “Crise de Julho”, atraíram para o embate as demais potências europeias, globalizando o conflito. É o tema do livro Os Sonâmbulos (Cia. das Letras), de Christopher Clark.

Pelos jornais, a Primeira Guerra levou cerca de um mês para nascer, enquanto a Segunda teve parto mais rápido: com a invasão da Polônia, em 1º/9/1939. O Estadão deu manchete precisa: “Começou a guerra na Europa”, enquanto o Diário de Notícias perguntava: “Malograram-se as tentativas para salvar a paz?” O NYT publicou todas as notícias, mas não explicitou em título o conflito continental.

Pensar historicamente

Embora seja a “testemunha ocular da história”, frequentemente o jornalismo tem dificuldade de lidar com as raízes que podem elucidar os fatos. Sua matéria-prima é a notícia e o prato quente que oferece é o texto surpreendente, que pareceria requentado se fosse previsto antes.

Ao avaliar a cobertura que fez da Guerra do Vietnã (nos anos 1960), o repórter americano David Halberstam disse: “O problema é tentar cobrir uma coisa todos os dias como novidade, quando é tudo uma consequência da Guerra Franco-Indochinesa, que já é parte da história” (A Primeira Vítima, de Philip Knightley, 1978).

Há exceções. Em plena Primeira Guerra, o escritor John Reed publicou um relato de viagem pela Europa do Leste conflagrada. No livro, diz: “A questão macedônica [dos Bálcãs] tem sido a causa de todas as grandes guerras europeias nos últimos 50 anos. Até que seja resolvida, não haverá paz, nos Bálcãs ou fora deles” (War in Eastern Europe, 1916). A frase é uma das citações mais populares da bibliografia sobre conflitos nessa região. Em 30 palavras, o jornalista que ficaria famoso com Os Dez Dias que Abalaram o Mundo (sobre a tomada do poder na Rússia pelos bolcheviques, em 1917) resume o passado e prevê o futuro.

A raiz dos conflitos: “A Macedônia é a mais terrível confusão étnica jamais imaginada. Turcos, albaneses, sérvios, romenos, gregos e búlgaros vivem lado a lado sem se misturarem.” O que aconteceu: as causas de tensão não foram resolvidas, por isso, nas décadas seguintes, houve vários conflitos na região. Se ampliamos o foco um pouco mais para o leste, vemos confusões análogas de país em país. Reed ajuda a interpretar as crises entre Rússia e vizinhos e prever outras.

O desconforto do jornalismo com a história motivou decisão radical do dissidente iugoslavo Milovan Djilas (1911-95), que foi dirigente comunista até cair em desgraça e passar anos preso. O escritor Robert D. Kaplan conta: “Eu percebi que Djilas acertava sempre, era capaz de prever o futuro. Seu método era simples para um europeu do leste e difícil para um americano: ele ignorava o noticiário e pensava apenas historicamente. O presente para ele era apenas um momento do passado se movendo rápido para o futuro” (em Balkan Ghosts, 1993).

Djilas, então, deve ter previsto uma Europa do Leste fragmentada em inúmeros pequenos países e cheia de disputas nacionalistas. Como há cem anos.

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Leão Serva é colunista da Folha de S.Paulo