Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Documentário ‘Setenta’ busca público amplo

O documentário Setenta é uma bela surpresa. Dirigido por Emília Silveira, o filme evita cuidadosamente o doutrinarismo, o proselitismo, o passadismo. Deixa que os personagens escolhidos para dar seu testemunho se mostrem como são, como sempre foram. Emília diz que “o ser humano não muda; com a velhice, os defeitos pioram e as qualidades melhoram”. Entra na composição da obra, assim, uma dimensão humana traduzida sobretudo, mas não só, pelo humor que pontua várias falas.

Não é surpresa que, boas exceções à parte, a mídia jornalística não tenha percebido a importância do filme, que apresenta pessoas, não figuras míticas, muito menos sinistras. A tortura é denunciada (são incorporados pequenos trechos do documentário Brazil, a Report on Torture,feito no Chile em 1971 por dois americanos, Saul Landau e Haskell Wexler), e também inconsistências do esquema da luta armada levada a efeito contra o regime de 64.

Emília Silveira, ela mesma jornalista de formação, como a repórter da TV Globo Sandra Moreyra, corroteirista, responsabiliza pelas deficiências perceptíveis hoje na imprensa menos os jornalistas jovens do que o esquema de trabalho a que são submetidos, com baixos salários e excesso de tarefas. Cujas deficiências são “compensadas” por releases altamente profissionais.

Isso talvez explique por que uma denúncia da maior gravidade feita no documentário, a de que integrantes da repressão receberam 100 mil dólares por guerrilheiro atraído a voltar para o Brasil, e morto, tenha ficado sem suscitar qualquer apuração jornalística ulterior.

Eis a entrevista.

Dominados pelas fontes

Como você qualifica a recepção dada a Setenta?

Emília Silveira– Nossa expectativa era muito pequena. Fui surpreendida. Sou uma diretora com tradição em televisão, foi meu primeiro trabalho no cinema. É verdade que na TV Globo sempre dirigi programas relacionados a jornalismo e sempre tive ligação com jornalistas, sendo eu mesma uma antiga jornalista, com longa passagem pelo Caderno B do Jornal do Brasil.

O tema é difícil. Documentário tem zero incentivo para ir a exibição e se manter em exibição. Mas Setenta teve uma trajetória maior do que a de outros documentários. A imprensa se interessou primeiro devido à vizinhança da data simbólica de 50 anos do golpe do início da ditadura e, depois, pela maneira como o tema foi tratado.

A divulgação foi excelente. Temos uma divulgadora de cinema de primeira linha, Ana Luiza Muller. Ela fez um pressbook com perguntas interessantes e eu escrevi respostas.

Há no filme pelo menos uma informação que deveria ter merecido interesse jornalístico, sobretudo em tempo de Comissões da Verdade: um dos personagens diz que a atração para o Brasil e liquidação de guerrilheiros refugiados em Cuba e outros países era premiada com a soma de 100 mil dólares por cabeça.

E.S.– Os jornalistas hoje dificilmente aprofundam a pauta. Fazem, em geral, as perguntas convencionais sobre o custo do filme e outras informações padronizadas – o que me levou a fazer o filme, como escolhi os personagens, etc. –, e param por aí. Dá para perceber quando o repórter não leu mais do que o release de divulgação. Mas é preciso colocar isso em perspectiva: os jornalistas ganham mal, trabalham demais, tratam de mil temas, não conseguem se especializar. Essas são as razões principais por que ficam muito em cima do release. É uma tragédia. Quase como se a fonte dominasse o repórter. Como se este não fosse capaz de ir além do que você, fonte, está propondo. A maneira como empresários e chefes estão encarando o jornalismo é assustadora.

Isso dito, não houve no tratamento dado pelas mídias ao filme erros, ocorrências desconfortáveis. Muitos jornalistas foram cuidadosos. Tive uma grande surpresa ao encontrar na exibição do documentário no bairro carioca de Guadalupe, na Zona Norte, a veterana Léa Maria. As resenhas do Estado de S. Paulo, de Luiz Zanin Oricchio e Luiz Carlos Merten, foram impecáveis. No Globo, o bonequinho aplaudiu. Os jornais Estado de Minas, Zero Hora e Correio Braziliense deram boas matérias. Os repórteres dos estados são ótimos, estudiosos. Talvez sofram menos pressão no trabalho, disponham de um tempo maior. Na televisão e na internet a divulgação foi muito boa. 

Isso se deve em alguma medida ao fato de que a Globo Filmes foi uma das produtoras do filme?

E.S.– Sim. O filme vai passar na Globo News e no Canal Brasil, que o coproduziu. No Canal Brasil teve seis chamadas. Na Globo News, incontáveis. Na TV Globo, ganhou intervalo comercial do Jornal Nacional e de novela.

Público escasso

Alguma esperança de que isso ajude a impulsionar documentários no país?

E.S.– Não existe público para documentário no Brasil. Não existem condições culturais, nem econômicas, entre outras razões porque quando você termina o filme, ele já está pago.

E fora do Brasil?

E.S.– No caso de Setenta, boa recepção na França, e o iTunes quer o filme para vendê-lo na América Latina. A recepção não foi tão boa na Alemanha e na Inglaterra. Nos Estados Unidos, um distribuidor se mostrou pessimista. Acha que o público dele não iria entender o filme. Por sinal, ao finalizá-lo garantimos já versões com legendas em espanhol, francês e inglês. É tipicamente uma lição de profissionalismo que eu aprendi trabalhando na TV Globo.

Foi a partir da minha experiência na Globo que eu concebi o filme voltado para um público amplo. Não queria fazer um filme para a minha galera, a esquerda. Quando entrei na Globo, pus na cabeça que eu tinha que aprender a ter o pulso do grande público. Falar com muita gente, não para o “gueto” do Caderno B do Jornal do Brasil. Trabalhei em programas como Criança Esperança e coberturas de Carnaval. Percebi que as pessoas acima de mim, na televisão, não apenas tinham o pulso do público: eles eram o próprio público. Se eu pegava carona no carro de algum diretor, constatava que ele estava curtindo a trilha sonora do programa que dirigia.

Que critério você usou para escapar do discurso dirigido a iniciados?

E.S.– Submeti a amigos com diferentes posições. Mostrei uma montagem inicial para o jornalista Carlos Eduardo Ulup e para o cartunista Miguel Paiva. Reuni um grupo de garotos amigos do meu filho para exibir o filme e perguntar: “Vocês estão entendendo?” Não queria ouvir minha própria voz, ou fazer um filme cifrado, ou mudar a opinião de quem quer que seja. Enjoei de ver filmes políticos brasileiros: são todos iguais.

Como foi a repercussão política do filme?

E.S.– Imaginei que iríamos sofrer pauladas da esquerda e da direita. Da esquerda, porque o filme não faz a defesa da opção pela luta armada, deixa que cada um dê sua opinião. Da direita, por apresentar como seres humanos “terroristas comunistas”. Mas não aconteceu nada, tirando uma ou duas observações críticas partidas de personagens do filme.

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Mauro Malin é editor adjunto do Observatório da Imprensa